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terça-feira, 14 de julho de 2009

Em busca do tempo perdido #5 (Fim)


Hoje engravidei de sonhos. Se me fosse permitido sonhar sempre que o desejasse voava pela vida toda, escolhia nuvens balofas para percorrer o infinito, descansava nos coqueiros que ornamentam as praias dos nossos devaneios e só descia para nadar em ti. Dar braçadas no teu pescoço intensamente brilhante pela insinuação do perfume que lhe colocas.
A música continua e aproxima as mãos, e a noite ousa transformar-se em madrugada. É demasiado cedo para o arrependimento e demasiado tarde para o abandono, o néon fascinante que se avista no topo dos edifícios ainda nos apaixona. É tempo de uma tragédia sentimental.
Somos dois amantes que se amam loucamente mas que nunca olhámos profundamente nos olhos vazios um do outro. Tinha designado amar-te desde o primeiro dia e isso era tudo o que necessitava.
Dei-te a mão no escuro de um concerto no Coliseu, e tu não te importaste que estivesse demasiado escuro para sentir devidamente quem te tocava. Sabias de antemão que era a minha. Apertaste-a com maior intensidade conforme aumentava a grandiosidade do som da guitarra de João Cabeleira.
De seguida planei o braço uns segundos no ar, hesitando, e aterrei de mansinho como numa flor delicada, os meus dedos no teu colo.
- Amo-te muito! Dizes-me tu.
- Eu também. Respondo de imediato.
- Também gostas muito de ti, é?
- Não! Gosto muito, mais de ti.
- E de ti, não gostas?
- Por acaso, nem por isso...
-...
- Bom... talvez goste daquela parte que gosta de ti!
Corre, foge. Como se fosse possível eu pensar a perfeição. És mais bonita do que aquela Dora da discoteca que à noite era mais graciosa que durante o dia.
Sente o suor que escorre de mim e diz-me boa noite, embora seja apenas tarde e neste cubículo fechado que tresanda a mofo, vem ter comigo de vez, mata a ansiedade que chove em mim, pesada, deixa-me ser teu assim muitas vezes fechado em suor ou então só mais uma vez mas, com o tempo todo, para que o mundo acabe em encantada perfeição.
Num reflexo de criança, levo os dedos ao nariz para cheirar o líquido quente, melodioso com cheiro a ti e este percorre-me uma das narinas. Com pouco esforço, puxo a narina que quer ceder e toda a asa que compõe o meu nariz aquilino.
O ruído ensurdecedor de uma buzina de um vizinho soou estridente e provocou eco na minha cabeça completamente zonza.
E, ao acordar, dei-me conta que não estavas. A cama, com os lençóis brancos molhados, exalava um cheiro que reconheci como sendo o teu. Mas como?
O odor era o mesmo que trajavas no dia em que te conheci, e te sentaste a meu lado naquele autocarro.
Quando despertei finalmente, percebi que deras lugar a um pedaço de mim, descomposto em ti.
Embora para todos não passasse de um reles que passava os dias isolado, algumas noites deambulando pelas velhas calçadas, e noutras só com a intimidade nas mãos, enquanto tinha sonhos eróticos com as coxas das mulheres mais velhas que conhecia, agora sabia o que era saudade, amor, desejo e paixão.
Ainda atordoado de sono, os meus olhos, reflectiam aquele pedaço de papel que te tinha entregado, como me entreguei a ti, todos os dias e noites durante meses e dois anos.
Afinal, não te irei um dia contar a nossa história, nem morrerei no teu aconchegado regaço.
Terá algum aristocrata cobiçado a tua simpatia, o teu amor, o teu ventre?
Nada sei de ti miúda da franja.
Voltei a deitar-me sobre o catre de superfície plana e rija. Antes de o fazer estendi com um ritual profano uma colcha de riscas vermelhas. Uma coberta feita pela minha avó materna, toda ela de retalhos que abrigou o meu corpo derrotado. O livro já meio desconcertado pelas sucessivas leituras estava a meu lado. Coloquei a brochura sobre o ventre. Sei que apenas posso esperar um milagre de poder contemplar a minha menina da franja. O sono entrapou-o enlaçando-o em frangalhos de memória. Mas ainda assim sentiu que pedalava com força na velha bicicleta, por campos sem fim. Sem vislumbrar o se sonho, o rapaz do segundo direito pedalava cada vez com maior intensidade. Exausto quedou-se junto a uma fonte de água límpida e cristalina. A garganta sabia-lhe a sarro. O pó invadia-lhe a traqueia. Sentia um cansaço descomunal. A água não conseguia furar o muro de pó que tinha na goela. Sentia-se asfixiar, as cores da natureza antes vivas e fortes, esbranquiçavam como um caldo de cal. Tudo era branco. O Pencas sentia-se mal, muito mal. Dois dias depois eu e Dora fomos dar com o corpo enrugado do rapaz. A ausência de ruído despoletou a curiosidade feminina. A presença do mistério aguçou a curiosidade masculina.
O corpo do rapaz do segundo direito estava vestido com um fato preto, o único que tinha, mas que estava imaculadamente limpo. Desta vez não pegou na guitarra, e junto dele apenas um simples livro gasto e esmaecido o acompanhou na sua última viagem de amor, no seu derradeiro sonho.
Existiam posters de meninas de franja e cabelo preto por todo o lado nas paredes da estreita e esconsa sala. O silêncio tem dias, e em determinadas situações consegue ser mais pesado que toda a força que possamos querer ter.
Dora e eu deixámo-nos ficar, imóveis e mudos, junto do corpo inerte do infeliz rapaz.
Lá fora uma discussão animava a rua, cá dentro, nós éramos estátuas de gente sem nada, estátuas inundadas de melancolia. Eu ajoelhei-me e rezei pela alma azarenta daquele jovem. Dora imitou-me a intenção e o gesto. Na realidade, existe apenas uma condição para morrer… é estar vivo. Tinha vinte e dois anos de extravagância, muitos de solidão e certamente alguns de desilusão.

Era uma madrugada indistinta, sombria e chuvosa como qualquer madrugada de Dezembro, quando a campainha ribombou no segundo direito.
Surpreendi-me com aquele toque de campainha e como flutuando no espaço, dei por mim a espreitar por uma pequena brecha da janela do quarto. Dora dormia em perfeito mutismo.
Uma jovem de longa franja estava prostrada na soleira do prédio e olhava para cima. Pestanejava frequentemente devido aos grossos pingos de chuva que caiam em cadência.
Com as costas da mão direita, esfregou os pingos de chuva dos olhos afastando a franja que lhe cobria metade do rosto e uns olhos esverdeados sobreluziam no rosto simples, mas belo como uma aguarela de William Turner.
Depois de ver aqueles olhos compreendi que por vezes não sabemos apreciar o que de bom se nos é oferecido num olhar! Entendi que saber olhar é amar! Saber olhar... é compreender que a dimensão de um olhar é incomparável.
A expressão daquela jovem e do seu esbelto corpo estava somente num simples olhar.
E num simples olhar percebi o motivo pelo qual o rapaz do segundo direito já não o ocupava.


FIM



Texto: JC


Imagem: Google

4 comentários:

Maria Luis disse...

Olá João,
Tenho lido o desenrolar deste conto maravilhosamente bem escrito - como só tu sabes - e tenho conseguido conter-me e comentar apenas este, o último, o derradeiro.
Que pena que o final tenha sido tão trágico...
Mas pensando bem...não recordo uma história de amor que acabe de outra forma - tirando a linda história do Notebook, com a morte sublime dos dois amantes que fazem juntos a passagem para o eterno...
Faltam-me as palavras para te dizer o quanto gosto de te ler.
Beijinho para ti, meu amigo.

Jorge Martins disse...

Em poucas palavras, simplesmente fantastico! Adorei mesmo..

Abraço e parabens

Raquel Vasconcelos disse...

Quanta melancolia... numa vida, num ser.
DE uma beleza dolorosa.

Carla Silva disse...

Palavras para quê? Depois do que li, também vou voltar! Agradeço o comentário e espero voltar a ter-te no meu blog. Eu vou estar por aqui, à procura da essência da vida...