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domingo, 28 de fevereiro de 2010

Isabel


Todos os dias, saía de casa para ver os primeiros raios de sol da manhã, na enorme praia da Fonte da Telha e por ali passava os dias, observando os veraneantes que iam torrando os corpos.
Gostava de avistar os nadadores salvadores. Sempre tinha tido uma certa admiração pelo trabalho daqueles jovens musculados, de cor dourada e odor a sal.
E como o progresso não pára, as sereias salvadoras deambulavam igualmente pelo areal, enterrando os pés o que lhes provocava um andar sensual… Experimentem ver.
Na última madrugada daquele verão, antes que o sol se pronunciasse, decidi que podia explorar mais as falésias que vigiavam a praia.
Ultrapassei o longo areal, ainda frio e dirigi-me para uma colina íngreme e bastante escorregadia. Certamente que pouquíssima gente se daria aquele trabalho inglório. Passei por uma estreito trilho que contornava um grupo de rochas até que cheguei ao alto.
O vento fustigava-me o rosto com tal brutidade que chorava lágrimas como se uma agulha me espicaçasse os olhos.
Ali, no alto, o terreno aplanava, e o silêncio perturbava. O ar melancólico do alto da colina era intensificado por um velho casario abandonado, que pertenceu a uma família chamada Castro. Os Castro, família abastada nos anos setenta, tinham apenas uma filha, a Isabel.
Uma menina bonita, e com a particularidade de possuir uma brava cabeleira ruiva e o rosto pintalgado por sardas.
Há muitos anos atrás, ela desapareceu misteriosamente e nunca mais fora vista. Os Castro depois do sucedido partiram para as bandas de Lamego. A casa ficou abandonada, cercada de suas gigantescas cercas de ferro. A casa estava tão desgastada pelo tempo que parecia moldar-se ao chão e ao espaço em torno dela.
Ainda que ofegante, dei mais alguns passos, até bem perto das grades ferrosas e ferrugentas. Colei o nariz junto ao velho e corcovado portão e olhei em direcção a uma janela de portadas que outrora foram verdes. Era a janela do quarto de Isabel. Sabia-o porque trinta e seis anos me separam do primeiro dia que vi a menina ruiva naquela mesma janela, a espreitar o sol que lhe transformava os cabelos em madeixas douradas.
Nesse instante, lembrei-me das lendas que contavam na Fonte da Telha, nos anos que se seguiram ao sumiço de Isabel. Transformaram-na em vítima de um crime hediondo. Em algumas delas dizia-se que fora degolada pela força de um machado, em outras que tinha morrido afogada na banheira, que teria sido enterrada viva e que seu franzino corpo repousa em algum canto daquela casa. E mais que histórias sangrentas de assassinatos, a casa e Isabel, passaram a ser protagonistas de inúmeros casos de mistérios, pois não foram poucos os que relataram terem visto seu fantasma surgir por traz da vidraça da janela das portadas verdes.
Eu, céptico nestas coisas, nunca tinha visto o fantasma de Isabel mas pensei que aquele seria, quem sabe, o momento ideal, pois acreditava que os mortos só aparecem em segredo e apenas quando tudo se encontra no mais absoluto silêncio.
Queria vê-la. Comprimi ainda mais o meu rosto contra a grade, cerrei os olhos, e evocando a minha voz de adolescente murmurei, a medo:
— Isabel.
Nada.
— Mais uma vez.
Um novo sussurro, que enviei através do vento, à janela da portada que já fora verde.
— Isabel.
Aguardei alguns instantes, esperando que um ser de mais ou menos fantasmagórico se anunciasse através de qualquer uma das janelas da casa. Mas, nada.
Uns borrifos de chuva começaram a cair. Uma chuva fina e cadenciada que transformou todo o local numa branca e densa neblina.
Triste, mais um dia, voltei para casa e adormeci, esperando sonhar com o meu fantasma ainda não descoberto.
Algumas horas mais tarde, fui acordado por um ruído infernal que descia a minha rua. Uma centena de pessoas gritava que a casa dos Castro, na Fonte da Telha, estava a arder. Apressadamente e sem dar pelo tempo lá estava eu no meio da multidão.
Na casa viam-se bombeiros e policias por todo o lado. No telhado, nas janelas, no antigo jardim. Subitamente, surge um bombeiro com a face negra com uma menina ao colo. Aos encontrões fui-me abeirando cada vez mais da frente do antigo jardim e da cerca de ferrugem agora raiada de ervas que lhe preenchiam os espaços dos aros quebrados. Ali estava Isabel com os seus cabelos de ouro trazida da morte.
Nunca me tinha sentido assim, aterrorizado, mas ao mesmo tempo como alguém que habitasse um lugar inexistente ou mágico e acreditando ser capaz de ressuscitar os mortos. A menina foi conduzida a uma ambulância, e ao passar muito perto de mim, e por um breve instante tive a sensação do confronto dos nossos olhares, como se fossem cúmplices de algum pecado.
Aterrorizado, olhei aquele rosto de menina. Ela não crescera. Virei-me de soslaio para a esquerda e amedrontado, vi o meu reflexo no vidro da porta da ambulância que se fechara para seguir para o hospital.
O meu rosto tinha rugas feitas pelo tempo. O meu corpo era de homem. Isabel continuava a menina dos cabelos ruivos. Teria o tempo parado naquele local? Ou será que cessa perante a morte? Esteve na realidade alguma vez Isabel morta?
Não sei, apenas e só continuava a ver aqueles olhos que tinha fixado os meus.
Despertei. Os meus olhos estavam molhados. A minha almofada era testemunha do odor a sal que os meus olhos teriam deixado escapar.
Levantei-me atordoado e pensei que o tempo tinha ficado preso e acorrentado Isabel, para me dizer que aquela linda menina, era a filha que nunca tive, e como o destino é sábio, fez com que a conhecesse há trinta e seis anos.
Poe esta mesma razão, ainda hoje choro, pela filha que nunca tive.

In: A filha que nunca tive

9 comentários:

Sonhadora (Rosa Maria) disse...

Meu querido
Só um sonhador para escrever uma história tão linda...entramos nela do principio ao fim.
Lindo.

beijinhos
Sonhadora

Menina do cantinho disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Moi disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Ana Isabel disse...

Como sempre, as emoções apoderam-se de nós ao ler os teus textos, repletos de beleza, melancolia..


Um abraço daqui.

continuando assim... disse...

lindo e triste ...
muito

bj
teresa

Moi disse...

A nostalgia amarra demasiados loucos... ,mais do que possamos nós próprios acreditar.
Confesso existe uma tristeza não pelo abandono, mas por aqueles que perdemos e já não voltam a sorrir para nós, mas também naqueles que desejamos e não nos quiseram...
Mas como a vida mão é só a preto e branco, e como a nossa querida Lusa diz e o poeta também "o sonho comanda a vida".
Mas os poemas são também reflexo da alma, dos sentimentos, conjugados com uma certa dose de gostar de jogar com as palavras.

Maysha disse...

Ola Sonhador
Adorei a sua história, carregada de mistério e emoção. Linda, prende a atenção, aliás como tudo que aqui escreve.
Voltarei para me encantar com a sua escrita, muito bela.
Um beijo
Isa

catwoman disse...

Uma história que traz à tona uma infinidade de sentimentos, que nos prende até ao fim.
Beijinhos.

Unknown disse...

Adorei esta história mesmo!!
Embora arrepiante tambem!
e da forma como o fim imprevisivel da historia surge...
tem mesmo k publicar o livro a filha que nunca tive... pelas extratos k ja li, vai ser um livro aliciante de ler mesmo!
Fico á espera..
beijinhos