Performancing Metrics

BLOGGER TEMPLATES AND TWITTER BACKGROUNDS »

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

O Pendura

 
 
 
Ando irritável e impaciente. Corro de um lado para o outro como um esquizofrénico alucinado.
Hoje, acordei cedo demais. Como um autómato coloquei os pés no chão frio e com a bexiga queimosa aldeaguei devagar até à casa de banho. Os bóxeres pelos joelhos dificultavam-me a deslocação até ao espelho. Eu já nem necessito de espelhos.
Acordo todos os dias com a desilusão de ainda ser eu. Não preciso de espelhos que mo digam quando sei que vou encontrar o mesmo rosto cansado, as olheiras a escorrerem pela cara. É como acordar de um coma induzido.
Vejo a palidez do amanhecer sem ter dormido. Mais um. Baixo as pálpebras, tenho sono mas nenhuma vontade de dormir e esta luz tímida é a minha favorita. Daqui a pouco o sol vai subir e trazer o azul, no céu não restará nada deste tom rosado e líquido, que parece o sangue da noite a diluir-se como se tivesse sido apenas sonho.
Com olhar esgazeado e as pernas débeis sentei-me na sanita e segurei o rosto com as mãos em concha.
Olhei a parede… Os azulejos estavam tingidos de vermelho que podia muito bem ser sangue se eu pudesse arrancar o meu próprio coração com as mãos. Nada faz sentido, é sempre a mesma falta de ar, é mergulhar e não conseguir vir à tona, os pulmões em espasmos exaltados, o coração a rir-se a pensar que é desta. Depois acordo, sossego para a seguir se soltar a debandada nas veias. O coração a rir-se, a saltar do lugar, a ir para a cabeça e a esmagar o cérebro, o coração a fazer o que quer e a não me deixar fazer nada. Órgão ridículo este que nos mantém vivos quando nós nem sabemos bem o que queremos. Sempre a contradizer, a contrariar, a obrigar-nos ao torpor da esperança.
Sou eu. Ainda eu. Só por um dia, um único dia, gostava de não o ser, descansar de mim, em mim. Sobreviver ao cansaço. Porque a esperança espera e nunca desespera.
Mas a esperança é uma cabra e diz-me ao ouvido que um dia vou acordar outro. Não acredito, embora digam que ela é a última a morrer.
Finalmente afundei na banheira e descobri que as lágrimas não se misturam com a água quente perfumada com sais de banho... A espuma fica por cima e as lágrimas caem como pedras em charcos de água. A água quente a correr na banheira não me aquece. Se o meu coração for já uma pedra vou ao fundo e sei que ninguém me ouvirá chorar.
Mas não fui ao fundo. Fiquei bem à tona como um pedaço de cortiça a vaguear nas águas de um rio. Envolvi-me na toalha turca de cor escarlate, julgo eu, e mirei-me de novo ao espelho.
Preciso cortar o frugal cabelo. Mas hoje vou ao barbeiro. Eu sei que gosto pouco de cortar o cabelo, as lâminas rentes à cabeça incomodam-me. Mas o pior não é isso. São os espelhos por todo o lado, a obrigação de me olhar nos olhos sem o alívio de poder passar água na cara. O barbeiro obriga-me a tirar os óculos. A visão deturpa-se, mas não esconde as olheiras. Não disfarça os olhos cansados, os lábios secos da espera.
O corpo que amadurece e se prepara para envelhecer. Quando dou por mim, e faço-o sempre tarde demais, estou demasiado mergulhado em quem sou. Como se entrasse pelos meus próprios olhos e pela minha própria boca a dentro e violasse todas as recordações. O barbeiro pousa a máquina, pega no espelho pequeno que mostra a nuca e não mostra nada. Pergunta-me se está bem assim e nunca lhe diria que não, pois sem cangalhas não vejo népia. Ponho os óculos. Espero os segundos necessários para que a visão se reajuste. Respiro de alívio. Tenho menos cabelo, pareço mais velho. O que ainda não me desagrada, mas é sintoma de que me estou a enganar. Na idade, e comigo próprio. 
- Ó Belmiro posso ir à pendura contigo? Não tenhas medo que eu sou experiente. Mais de metade da minha vida tem andado à pendura. E tal como na vida o pendura é carne morta, por isso já sei que devo, permanecer no meu pouso, muito quieto e calado e não tentar ajudar em nada. Somente, deixar-me ir… Como sempre…