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domingo, 26 de setembro de 2010

O preto fica-te bem...



Um dia recebi um email...

“Escreve-me um fábula, um poema, uma frase, uma palavra… o que quiseres… tenho saudades de te ler! Pode ser num guardanapo pingado de café…”
ET


Num guardanapo pingado de café, resolvi escrever uma simples frase.
Continuei a rabiscar em guardanapos, sempre que me ocorria uma ideia, um pensamento.
Assim nasceu este conto ficcionado, ou talvez não.
Um conto que quer ser a própria vida. Sem rodeios ou máscaras, crime, amor, ódio, vingança, incesto, violação, homicídio e muito mistério irão confraternizar em conjunto com as diversas personagens num misto de dor e prazer.
Lágrimas de sangue corroídas pelo tempo que se comprime em demasia. E apenas me cabe dizer: “Que o preto fica-te bem…”


Parte 1
Gisela

Enquanto os quilómetros iam passando na berma da estrada, Gisela mirava o horizonte limpo na manhã por estrear.
Uma mescla de cores em azul e rosa alaranjado diziam-lhe que em breve o sol iria aparecer.
Paira um silêncio branco, belo, um silêncio puro pendurado nas copas das árvores recortadas como num quadro de Claude Monet em tons pastel.
Ao longe, o céu aparece laranja avermelhado. E, pouco a pouco, uma imagem disciforme em chamas se vai mostrando e sobe lentamente, prendendo toda a vida existente na sua contemplação.
Deixou-se envolver pela pulcritude matinal, sentada no mutismo do carro.
Apesar da beleza que o céu vestia sentia-se estranha naquele dia. Tudo no pequeno mundo que lhe sustentava a vida parecia ir ruindo pouco a pouco. Na verdade, não saberia dizer se era essa a causa daquela sensação de se olhar como se saísse de si. Todos os ruídos da madrugada se ouviam, como se nela se tivesse feito o silêncio.
Foi então que a solidão bateu à porta.
O braço estende-se para o exterior da janela do carro, como que tacteando a ausência e a vacuidade que a invadira. E, suavemente, o corpo entrega-se, rende-se e, envolto no mutismo do alvorecer, deixa-se deslizar para o espaço entre o sonho e a realidade.
Gisela continuou a ver-se, espectadora de si. Estranha. E olhando-se, àquele vulto que lhe parecia diferente do que via para lá do espelho retrovisor, percebeu da debilidade de tudo o que a envolvia. Da possibilidade de tudo partir, de um momento para o outro, como qualquer vidro. Nem pensou em cristal. Isso seria sonhar-se. Ela via-se claramente como parte de um todo, sem ilusões. E via-se frágil.
Há que ordenar ao corpo que batalhe contra a letargia e que inicie mais um dia.
“Merda preciso respirar! E andar! Andar até que o corpo me dê tréguas e descanso.”
O motor da Audi roncava e os pneus relinchavam a cada curva.
Os pensamentos tolhiam-lhe a mente, não lhe dando espaço para mais nada. O alcatrão era percorrido por uma tactilidade inata.
“Preciso urgentemente de um sono tranquilo e não desta intermitência entre o sono e a vigília que me derreia o corpo e me marca os olhos.”
Olhou para o cinzeiro do carro e reparou que estava apinhado de cigarros meio fumados, meio consumidos. Como a vida, que a ia consumindo aos pedaços e que a corroía por inteiro.
O coração ia-lhe bombeando lembranças e inundando-lhe a alma de memórias.
Porque teria aceitado aquele encontro?
Sabia que tanto o marido como ela há muito que não encontravam o “cruzamento” entre o ontem e o amanhã.
Tudo tinha desmoronado.
“Preciso respirar! Andar! Inspirar o ar escuro da noite e perder-me entre casas e ruas desertas. Depois deste encontro irei para uma esquina esperando o amanhã. E esperar o amanhã como se esperasse alguém. Como as putas. Mas puta é esta vida que me consome. As palavras já me sabem a mofo e têm odor azedo como fel.”
Gisela tinha um casamento estável e feliz. Um casamento dos tempos hodiernos. Tão moderno como a maioria dos amigos com quem convivia. A estabilidade mantinha-se porque não se viam. A felicidade resistia porque sabia que não existiam dias perfeitos. Nem aqueles em que o sol brilha e se reflecte no mar azul.
Nem que uma ternura infinda a encontrasse ela sabia que não era a felicidade e por essa razão deixou de procurar dias perfeitos e tentou unir pedacinhos em que a vida se diz bela…
O tédio dos anos corroía uma relação branda e pouco, ou nada estimulante.
Todavia, o que Gisela pretendia era encontrar de novo o cruzamento perdido e descruzá-lo, corrigi-lo, rectificá-lo, torná-lo recta, numa estrada limpa de agressivas memórias.
Ligou o rádio. A música soa, a solidão recua, como se estrategicamente procurasse só um tempo melhor para se impor.
A melodia reconfortou-a, e quando se apercebeu estava no local combinado. Uma enorme mansão erguia-se à sua frente. As paredes amareladas e parcialmente cobertas por enormes glicínias dava à casa um semblante estranho e enigmático.
“Que raio estou aqui a fazer?”
Quis recuar. A indecisão cobriu-a totalmente. Na verdade a sede de vingança inundou-lhe as veias de água gélida, em vez do sangue rubro de outrora. Sentia o sangue envenenado de mágoas, entoando cânticos trémulos e fúnebres.
Hesitante, continuava amarrada ao banco do carro. De soslaio olhava o telemóvel que permanecia mudo.
Gonçalo saiu da casa apalaçada onde vivia e caminhou pela poeirenta estrada de alcatrão feito de verde relva.
Era um homem de elevada estatura e porte altivo, de pele branca, vestia um terno azul-marinho como o céu num dia de sol.
Mantinha uma passada cadenciada e firme como um boneco de trapos e dirigia-se para a Audi de cor cinza, indiferente aos olhares que ela lhe dirigia.
Gisela acenou com o braço esquerdo e esboçou um frio sorriso. Ele devolveu o sorriso, mas assentou-lhe mais alguma ardência.
- Fui à janela e vi o carro! Exclamou. Ela voltou a sorrir palidamente.


(Continua, porque a vida prossegue, mesmo que seja madrasta)