Performancing Metrics

BLOGGER TEMPLATES AND TWITTER BACKGROUNDS »

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

"Sonhador mãos de tesoura”

Quantas vezes transmito formas algo esquivas aos actos deformados do meu pensamento, sempre que me descubro neste estado de apatia.
Apenas mais um dia como todos os que guardo na memória.
Penso muito, penso demasiado…
Não quero que dêem pela minha presença. Gosto de estar no meu canto, e ver as águas correr sempre no mesmo sentido. Na direcção oposta ao meu desejo.
As luzes delicadas à beira-mar reflectem-se na corrente negra, e deixam um rastro que sigo indiferente a tudo e todos.
A distância por vezes edifica um novo rumo, e os trilhos que outrora sorveram as vozes, distanciam-se agora de um único ponto. A saudade.
Não, não quero que dêem pela minha presença.
Desejo um amor sem pressa. Um amor vagaroso que me permita a busca de um pingo de luar.
Quero amar serenamente sem ter de derramar na água os lençóis esquecidos que fizeram de vela quando o vento soprou no mar.
Cada dia que aflora a minha vida, mais se sente a lacuna das raízes que não me amarram ao chão.
Quem me dera poder beijar o sol e incendiar os ventos da indiferença. Ter a coragem de olhar a lua de frente e mergulhar sem medo no mar exaltado, esquecer-me de mim e lavar os meus pecados. Penso muito, penso demasiado…
Serei eu um ladrão de sorrisos, que rapina júbilo a quem me rodeia?
Será que roubo pequenos pedaços de estrelas, sonhos e promessas?
Não, eu não colecciono gargalhadas, palavras de amizade e confiança, nem junto tesouros infindáveis numa cave escondida.
Volto a pensar se serei um “Eduardo mãos de tesoura” que por mais que faça acaba por magoar aqueles que ama?
Por que motivo ao estender as minhas mãos, provoco estranheza e dor?
Custa-me pensar que a única forma de não me magoar, nem magoar os outros, é pelo afastamento.
Terei de agir como o verdadeiro Eduardo? Isolar-me e viver numa mansão junto das estrelas, distante de todos, e exprimir o meu amor esculpindo pedaços de gelo para que as pessoas que amo me entendam, sintam o gélido sentir que me imputam?
Será que terei de viver como num conto de fadas, que, apesar da diferença que sinto, tenho sentimentos, amo, e também sou ferido?
Para mim, as mãos de tesoura de Eduardo são apenas uma metáfora da dificuldade em expressar sentimentos, em se relacionar com os outros como tantos de nós que vivemos este os ínfimos dias deste mundo.
E são dias impossíveis de serem iguais, os dias diferentes de todos os dias.
Somam-se as diferenças da igualdade e temos dois dias iguais. O somatório da verdade.

Serei um "Sonhador mãos de tesoura"?

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Quando a lua se esconde



Desde petiz que sempre pressenti que a noite nascia pelo seu odor. O aroma escuro acariciava-me as faces. Hoje avassala-me o espírito e a alma.
A de hoje estava particularmente abafada e o calor penetrava pelas janelas do meu quarto.
Estou agora na minha cama e nem sei como aqui cheguei.
Não, hoje não vou adormecer. Quero e necessito viver a noite. Coisa que não faço há imenso tempo, ou quase nunca fiz.
A tua presença está em mim e sinto-te. Tal como um sonho delirante, apenas te vejo a ti e vivo a vida num breve instante.
Vou ao teu encontro. Quero continuar a sonhar contigo a meu lado. São delírios de uma mente amante. Sonhos de um homem mendigo de amor que sonha de olhos abertos.
Sei que nunca me abandonaste, sempre me protegeste, respeitando as minhas escolhas, enquanto eu, me refugiava nos dias que passavam analisando as minhas inseguranças na esperança de obter respostas.
Mas há coisas que não têm explicação nem resposta, simplesmente são.
Sonho contigo e pensei que poderias ser a chave que balança hesitante no colo da fechadura do meu viver.
Sofro o desvario e a loucura porque me sinto uma semente vazia, um fruto podre no meu despotismo, sem folha, flor ou fruto.
Sinto-me um barco inacabado a percorrer águas estagnadas que me amarra ao leito do meu torpor, e perco-me nestes pensamentos, escondo a tristeza por entre a minha janela que se fecha na escuridão da noite. É como se ao sonho faltasse o delírio e como se ao delírio faltasse o sonho.
Abdiquei da saída noctívaga e narcotizei-me a pensar que acordava apenas daqui a uns anos num qualquer apeadeiro, numa cratera da lua.
Vi que das estrelas caíam palavras que juntinhas faziam uma frase de um texto nu.
No entanto sei que habitamos a força gravítica da terra onde podemos ser pensamento, mesmo triste, mas onde a vida existe. E, só ela responde quando a lua se esconde.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Voltarei


"Nunca tiveste aquela sensação de amares alguém, de amares alguém muito, e as circunstâncias em que a tua vida acontece destruírem a possibilidade desse amor, apesar de ele continuar a existir dentro de ti?"

João Tordo in Hotel Memória

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Striptease da alma



Chegaste numa noite de luar e disseste um “quero-te”, devagar.
Eu disse que sim.
Aliás, nunca soube dizer não, principalmente a uma menina bonita, nunca soube dizer que não, sobretudo a uma menina bonita enrolada num vestido curto, nunca soube dizer que não, especialmente a uma menina bonita enrolada num vestido curto, de alparcas nos pés e a sussurrar coisas cálidas ao ouvido.
Eu sorri-te e fomos felizes por um tempo. Recordo para todo o sempre o nosso primeiro dia em que nos beijámos atrás do pavilhão da ginástica. O tempo é sempre curto para fazermos tudo o que queremos. E é sempre longo demais porque passado algum tempo morre a pirexia do amor.
Esse dia reflecte-se hoje no tecto vazio para onde estou a olhar há duas horas e quarenta e sete minutos. Foi o princípio do fim.
Foi o princípio de um mês de ternura lubrificada em que cada momento e era intensificado ao limite. Fomos carne ardente de desejo por um tempo. Foi o princípio do fim da ilusão que pode haver calor para sempre, foi o fim do engano do “para sempre”.
Mas não podia ser de outra forma. Porque quando aos treze anos, no casamento de uma prima, dancei com a Lena, a tal menina, tive pela primeira vez consciência do desejo.
Nessa altura deveria andar apaixonado pelas doze colegas de turma ou por alguma rapariga mais nova da turma do Pardal.
Mas a Lena foi, nessa dança, o amor. Sim… nesse tempo longínquo existia amor, paixão, fantasia e alguma dose de inocência.
Sou um homem de cinquenta anos e avistem que ter cinquenta anos hoje é muito diferente de tê-los há cinquenta anos atrás.
Perguntam vocês, porquê?
Porque somos pessoas de dois séculos. Conhecemos o século passado e o presente. Crescemos nas pré-tecnologias informáticas do “ZXSpectrum” e assistimos à mudança de toda uma sociedade que se encontrava amordaçada e que sem arreios galgou sem prudência o muro da liberdade. Pertencemos a dois mundos, um, quase medieval, o outro, que lembra as histórias de ficção científica do “Espaço 1999”.
Ter hoje cinquenta anos vale mais do que nunca!
Mas o que me trás a este tema?
Há bastante tempo que me deparo com coisas neste mundo virtual, que é capaz de abolir a paciência a um “Santo”.
Que o mundo é cruel, todos nós sabemos. Que é cruel, porque as pessoas o são, também todos sabemos.
Em tempo de tanta mulher exposta, eu continuo a afirmar que gosto de as despir nuas, para as poder pintar na sua essência. Trabalhá-las com as mãos de um artesão como uma peça de porcelana.
Porque hoje em dia talvez a verdadeira excitação esteja em ver uma mulher despir-se na sua verdade, desnudar-se emocionalmente.
A banalização da nudez explícita que se observa pelos cantos é devastadora para a mulher e castrante para o homem.
O que não falta é candidata para tirar a roupa.
Serviu de figurante numa novela, tem um corpo jeitoso… Capa de revista da Playboy. É prima aluada de um jogador de futebol posa nua, porque o primo mete a cunha na Maxmen.
Caiu de um terceiro andar e saiu ilesa. Entrevista para a televisão… E já agora umas fotos para um artigo da FHM?
Ganham uns euros. O marido ou o namorado dá o seu apoio porque o dinheiro até faz falta, o pai fica orgulhoso, a mãe acha um acontecimento, as amigas invejam, então pudor para quê?
E porque a Concentração Internacional de Motos do Algarve não é só caveiras, fatos de cabedal e motociclistas de alta cilindrada, o palco principal do festival o aclamado concurso da Miss T-shirt Molhada. E chega para todas.
As motards mais desinibidas e com alguns atributos também têm a sua oportunidade de mostrar que a sensualidade também anda sobre duas rodas."Gosto muito do strip, seja de mulheres ou de homens", garantia uma jovem espanhola, na primeira fila a um amigo que nunca faltava a este e outros eventos do género. Coreografias, arte e expressão não eram o principal motivo para a jovem estar atenta ao palco. "Quero mesmo é ver corpos nus."
Não será muito mais intenso assistir a uma mulher desabotoar os botões da sua fantasia, da sua dor ou da sua história?
Não é muito mais erótico ver uma mulher que sorri, que chora, que vacila, que fica linda sendo sincera, que fica uma delícia sendo divertida, que deixa qualquer um maluco sendo inteligente.
Não é fácil tirar a roupa e ficar pendurada numa banca de jornal mas, difícil por difícil, também é complicado abrir mão de pudores verbais, expor segredos e insanidades, revelar o interior.
Despir a nossa alma e mostrar quem somos, o que vestimos por dentro.
Mas desnudar-se assim não é para qualquer mulher porque só mulheres especiais e maduras o fazem com intensidade.
Eu não conheço striptease mais sedutor?
E, vocês?
Já agora… vale a pena pensar nisto!




Este texto nasceu após a leitura de uma crónica da jornalista Martha Medeiros (Outro tipo de mulher nua…)


Imagem: Google

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

O sono da mentira

Não falamos, nem sorrimos. Os olhos sentem vergonha de nós e por essa razão evitam-se.
O meu sono teima em chegar, o teu abraça-te e leva-te para um mundo de mistério e luz.
A tua boca entreaberta em finos sopros de hálito quente tolhe-me o pensamento e o sossego.
Os anos galoparam como um cavalo de corrida. A distância da meta era diferente para cada um de nós e, quando se corre sem o mesmo objectivo, o percurso é sinuoso, torturante e o triunfo quase sempre intangível.
E depois do apogeu, sempre chega o declínio, e não tardou muito até que o nosso idílio de amor se revelasse como uma tragédia de Shakespeare.
E como “ser ou não ser, eis a questão:”, lembro com nostalgia a nossa epopeia. Uma trajectória algo atribulada e nem sempre pacífica.
Eras uma pequena rebelde, extravagante e imprevisível. Mas na mesma dose de bravura que te caracterizava, possuías ao mesmo tempo uma serenidade estranha, que me cativou.
O teu corpo era tão feito de sol que aquecia meus poros cristalizados de lua... e, eu via a lua através do teu corpo, e a noite lunar que te aflorava o rosto.
Passaste a dormir no início do meu segredo. Dormias por ti e por mim.
Eu continuava mudo de voz e de sentimentos. Respirava as horas suspensas no ar e aspirava música rock debitada por um rádio a pilhas enquanto recostava no corpo da noite que me fazia companhia.
Já alterei algumas coisas na minha forma de estar, mas não me peçam mais daquilo que posso dar.
Não prometo o que não sei se posso cumprir. Tento, luto por, mas não invento nem crio falsas expectativas.
Por essa razão idealizei fantasias, ilusões. Nada, tudo sem qualquer resultado.
Em surdina começo a ouvir vozes que me fizeram acreditar em algumas coisas na vida, que me deram conselhos, mas também houve outras que me derrubaram, fizeram-me cair, sentir-me num precipício. As vozes passam a ecoar cada vez mais alto. Estão dentro da minha cabeça, parecem querer estoirar-me os miolos.
Desamparadamente deixo-me cair. Teria alguma vez sido amado?
Será que conheço o verdadeiro significado do amor? Na realidade, não sei se sei.
Sei sim que me sinto fraco. Desgastado por meio século de existência e muitos anos de marasmo.
Por vezes quero sorrir, mas a tristeza está vincada na expressão dos meus olhos. Já não logro ninguém. Cada vez mais, acredito no que diz o poeta La Rochefoucauld, quando diz que “O verdadeiro amor é como a aparição dos espíritos: toda a gente fala dele, mas poucos o viram.”
·
Uma noite de insónia e tracei no papel da memória o percurso da minha sombra.
Não se ela também deixou de me seguir.
Eu numa apatia aterradora diária deixo-me enterrar no sofá de sempre, acende o cigarro da angústia, levo-o serenamente aos lábios, e inundo os pulmões de alcatrão, para que o negro possa cobrir igualmente a minha alma que acredito estar dentro do peito.
As malas meio feitas, os olhos postos num horizonte que também já não existe. A hesitação. Ainda, e sempre, a hesitação.
Para trás, o sonho que um dia também foi meu. Meto as malas no carro. Lembro-me que me esqueci do casaco de camurça. Não volto atrás para o ir buscar. Apenas um ser me segue. Aproxima-se para se despedir. Rogava-me apenas uma simples festa. Para ele é suficiente. Se ficasse, agora, seria por ele. Por aqueles olhos tristes que não entendem. Sento-me no carro, fecho a porta, ligo o motor. O portão está à minha frente, à espera. E eu preciso de me encontrar, e por isso vou.
Nem por aqueles olhos tristes poderei ficar, se ficasse agora, toda esta luta ficaria por ganhar.
Passo o portão e olho uma última vez pelo retrovisor onde antevejo os dias passados, as tardes cor-de-laranja, o barulho das folhas das árvores, e os sorrisos. Levo-os todos na mala, quase feita.
Nunca poderei olhar nos olhos daqueles que me poderão fazer ficar, porque sei que à mínima hesitação, eu fico. Por essa razão não me deixo fracassar e sem mesmo olhar, conduzo, mantendo os olhos no horizonte inexistente que desenho a cada segundo.
Respiro profundamente, fecho os olhos por segundos e sei que irei na direcção certa, ao passar aquele portão. A verdade está no horizonte à minha frente.
E o horizonte ao crepúsculo tem a mesma cor dos olhos que vejo reflectido em ti. Mas, parto. Resoluto. Decidido. Sem me despedir de ti, sem me despedir do lugar, dos vizinhos, sem me despedir sequer do cão de olhos tristes.
Quanto a ti, meu querido amigo, recordarei sempre os teus olhos melancólicos, o olhar de cãozinho abandonado, o teu ar sorumbático, e se estiver escrito sei que me voltarei a encontrar contigo noutra volta do caminho. Parto, pois. De olhos postos no horizonte.
Partir é necessário. Levo aos lábios um cigarro que retiro do maço Ritz. Aquele será o primeiro cigarro do resto da minha vida. O maço é preto, a luz é alva. A noite é morna. A estrada corria monótona e sem fim.
Acompanhado pela maresia da noite e pelo borbulhar das ondas do genérico do “Oceano Pacifico” viajei sem rota certa.
Íamos pela beira-mar sem darmos as mãos. Já não dávamos as mãos nessa altura. Lembras-te? Passava a vida alheado. Naquela tarde junto às ondas que vinham descansar na areia por breves segundos partilhámos o ar morno do fim da tarde pois já nada mais havia a fazer. Senão aproveitar o momento.
Todos os momentos são preciosos e, esses instantes, as únicas coisas que tínhamos em comum. O momento.
E a vida é composta por momentos ritmados como as notas de uma sinfonia de Vivaldi.
Mas recordas que sempre me senti num espaço que não me pertencia.
Um estranho no meu próprio espaço. Por vezes odeio aquele que me envolve. Como abomino esta cidade com capa de puritana.
Como detesto os habitantes da desgraça que se recolhem nos templos para rezarem a um Deus sem rosto que não sorri. Saírem de lá como se tivessem a alma lavada para, depois, meterem as mãos entre as coxas da cidade a babarem-se como touros com meia dúzia de ferros e carícias de olhos arregalados, os lábios a endurecerem com o cheiro de um corpo à espera onde deixam a solidão, a mudez da mulher, a correria dos filhos, a indiferença do cachorro.
Eu sempre alheado de tudo e todos. Cada vez sentindo uma alienação mais contundente.
Nada do que me dizias me poderia interessar. Eu já não era dali. Não era teu. E sabias. Não te dava muita paz.
As rochas da praia eram minhas. As gaivotas do céu eram tuas. E assim se faziam as partilhas entre nós que em breve estaríamos apartados para sempre.
Vou fugir? Talvez de mim.
O céu espera-me, os rios pertencem-me. Posso mergulhar neles quando o desejar. Chapinhar na água e fingir que os peixes gostam de mim. O vento e a chuva já não me assustam.
Vou ser como os pardais que saltitam de árvore em árvore, que buscam a comida no chão num bicar desaforado entre folhas e pó.
A sombra continuava a deambular na procura de mim e de ti.
Encontrou-te na esplanada. Sentou-se e pediu um café, tu uma água com gás. Bebidas de sabor distinto. Porque já éramos distantes. Foi acontecendo assim a separação de quem era há muito separado. Unidos tínhamos sido embora que leve e fugazmente. Tão efémero foi o acordo que não poderia ter sido mais inverosímil a consequência. Um filho, que deixarei para o mundo como um decalque de mim. O decalque de mim foi crescendo, eu encolhi. Encafuei-me no lar, ganhei bolor, julgo que apodreci a comer cebola todos os dias a todas as refeições.
Os vizinhos deixaram de me reconhecer, os cães começaram a ladrar-me. E eu não sei mesmo como sossegar, porque mesmo morto permanecerei deste lado. Aqui!
Se me custa a vida, mais me custa uma morte em que perco o que me resta, o meu derradeiro poder de decidir se fico em casa ou saio, se faço ou deixo por fazer.
Morto, sem apelo nem agravo, virão primeiro uns tipos de bata branca despir-me, amassar-me, invadir-me. Posteriormente virão outros de fato preto, camisa branca perfumarem-me de incenso e taparem-me o corpo gélido com um lençol branco e que emana o mesmo odor. Mas, morto, sou como um pedaço de carne de matadouro, que só ninguém come porque ainda não chegou a fome! Mas, não faltará muito.
Como fazer o que é preciso fazer? Como escapar a esta ideia de que morremos e ficamos à mercê dos indiferentes ou dos inimigos? Pura e simplesmente desaparecer - desaparecer mesmo desaparecer - como esses de que fala o jornal da noite na televisão, que desapareceram sem ninguém dar conta e por isso ninguém há-de encontrar. Porque de facto ainda estamos no princípio… De quê?
·
Entretanto a madrugada engoliu a noite, e a brisa folheava-a aleatoriamente, descortinando os segredos ali apostos, incitando os sonhos que rondavam o sono que me chegara muito profundamente.
Acordei como um sonâmbulo. Passei água fria no rosto. O espelho devolveu-me uma figura sem expressão, sem vida, sem esperança, onde apenas era visível a barba de dois dias que me cobria as rugas do desespero.
Entreabri a janela. A custo mirei de longe a velha, caquéctica, amarga e dócil, Lisboa.
O Tejo já tinha despertado e os cacilheiros já lhe provocavam pregas profundas nas suas águas deixando um rasto de espuma como o do champanhe aberto no Maxime por uma espanhola da vida já em fim de digressão que recebe um cliente bêbado a cantar em voz rouca “o fado da sina” para despejar a dor de corno e o ciúme.

Reza-te a sina/Nas linhas traçadas/Na palma da mão/Que duas vidas/Se encontram cruzadas/No teu coração/Sinal de amargura/De dor e tortura/De esperança perdida/Indício marcado/De amor destroçado/Na linha da vida. (1)

A minha sina é sofrer, sarar feridas originadas por cada aresta da vida. Queimam no peito as cicatrizes profundas que ainda sangram e pulsam.
É tempo de fazer uma pausa na monotonia do tempo. Até o próprio cansaço descansa em mim. Triste sina a minha que embarquei neste barco sem amarras que assoprado pelo vento percorre mares desconhecidos.
Soltam-se as vozes na escuridão e no espaço que me engole. Escuto o fado, sentindo o pecado, que me leva para onde não quero estar.

(1)"FADO DA SINA"
LETRA E MÚSICA: AMADEU DO VALE E JAIME MENDES

In: A filha que nunca tive (não editado)

Imagem: Google

JC

sábado, 5 de setembro de 2009

A ferida do silêncio


"Existe no silêncio uma tão profunda sabedoria que às vezes ele se transforma na mais perfeita das respostas!"
(Fernando Pessoa)


É mesmo verdade, cheguei aos cinquenta anos. Não dei por qualquer transformação. Não senti a mágica que me devia ter invadido. O tempo passou como a coruscante luz de um relâmpago numa noite de estio.
Sei que não sou, não quero, não ambiciono, nem tenho o atrevimento, de querer ser exemplo para alguém. Devo ser o mais perfeito exemplo da imperfeição.
Penso nas cinquenta voltas da minha vida, nas promessas de eternidade que nunca se cumprem.
Penso nas relações que se juram sólidas e ao cair do calendário acabam. Penso nos dias que me levanto com a alma reduzida e me deito com a sensação de que nada na vida é eterno.
Flutuam emoções que vão mudando. Houve um tempo em que sabia que a minha vida ia ser especial, distinta. Ideais, valores e razões para lutar. Hoje vejo-me preso na monotonia, na cor cinza, na existência com uma única razão a de lutar por mim mesmo sem grande firmeza. No fundo vivo longe do mundo submergido na deliciosa melancolia.
E sei que enquanto sentir medo da chuva, todos os pingos serão uma ameaça e eu, apenas uma poça de água no teu inverno.
Como seria bom levar-te a ver o mundo nos meus olhos.
Sabes, as pessoas são como livros. Apaixonantes, divertidos, aborrecidos, insuportáveis.
Há os que tem somente três páginas mas inesquecíveis, há os que duram meses e gostas muito mas não os voltas a ler, há os que não te dizem nada e há aqueles que não voltas a olhar mas recordaras para o resto da tua vida. É tão difícil encontrar as boas pessoas como os bons livros. Obrigado a todos que são para mim como os meus livros de companhia. Nunca deixarei de reler as vossas páginas com amor.
Há quem não goste do silêncio. Muitos têm medo dele porque faz pensar. No silêncio a mente indaga de si para si e algumas pessoas preferem tudo já explicado e esclarecido pelos outros.
Eu não tenho medo do silêncio em que me perco.
Mas estou cansado. Sempre me entreguei complectamente.
Ja não há nada que me possam extorquir, porque já nada tenho. Sou um corpo sem dono, pertenço ao fundo dos grandes oceanos, ao voo das aves errantes.
Nunca amei e nunca fui amado? Ignoro se isto é verdade. Não sei responder. As dúvidas assolam-me o coração
Olha, quando eu morrer, não digas a ninguém que foi por ti. Cobre-me o corpo gélido com um desses lençóis com odor amantético que alagamos de beijos quando as horas eram outras nos relógios do mundo. Depois leva-o depois para junto do mar, onde possa ser apenas mais um poema.
Quando eu morrer, deixa-me a ver o mar do alto de um penhasco e não chores, nem toques com os teus lábios a minha boca fria. E promete-me que rasgas todos os meus escritos em pedaços tão pequenos como pequenos foram sempre os meus ódios e depois parte sem olhar para trás nenhuma vez. Se um dia, alguém os vir de longe brilhando na poeira, cuidara que são flores que o vento despiu, estrelas que se escaparam das trevas, pingos de luz, lágrimas de sol ou penas de um anjo que perdeu as asas por amor.
Afinal porque teria medo do silêncio em que eternamente me perdi.
JC
Imagem: Google