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sexta-feira, 31 de julho de 2009

Sonho


Continuo a minha caminhada, ainda em velocidade lenta. Tão lenta de início que não me apercebo se é sonho ou realidade.
Sabes, esta noite sonhei contigo, “Manela”. Entraste pelo meu sonho adentro sem eu te dizer nada. Sorrias e estavas bonita, como as últimas memórias que guardo de ti, a lembrança da miúda mais bonita da turma.
Devia ser verão, pois estavas com uma t-shirt pequenina que deixava perceber o biquíni, e sorrias como as flores coloridas que trazias por baixo.
Nesta noite falámos muito, contei-te as novidades todas, contaste as tuas novidades todas, falámos do tempo todo que passou, do teu curso inacabado e até falamos daquele concurso de misses em que entraste e ganhaste um prémio. Sorrias, bonita como sempre e como um filme que acaba passadas duas horas, naquela brevidade de tempo nocturno fomos felizes.
Desembrulho-me dos lençóis ternurentos e volto a ficar sozinho, dispo a roupa, (nunca gostei de pijamas, mas o frio irónico obriga a alterar as convicções) entro no duche e a água quente acorda-me para a brutalidade da manhã.
O microondas inteligente aquece o leite. Saio para a vida lá fora. Recebo um toque no telemóvel: “Cheguei. Estou à entrada, vem cá ter. Até já. Bjs.”
Cheguei à Fnac do Chiado e com um par de beijos seguidos de um café que aquece a tarde, quebrámos o gelo.
“Vem a minha casa. É bonita.” Dizes. “Vou oferecer-te qualquer coisa para a tornar ainda mais bonita!” Sorrio… só. Ficas sentada no sofá enquanto eu ponho um disco a tocar, música calma, uma escolha premeditada: tu gostas do piano de Bill Evans, eu coloco um disco de Bill Evans. “Sunday at the Village Vanguard”.
É domingo, não estamos em Nova Iorque nem num clube de jazz de uma zona fina da cidade, mas a tarde cai devagar e sabe bem.
Vais dizendo coisas variadas e mostras as compras acabadas de fazer: duas camisolas e roupa interior comprada na loja Women’s Secret.
Mostras-me como é o teu top e eu digo que não gosto das tuas compras, tu provocas-me dizendo que vestido fica muito melhor.
Não chegamos a confirmar a veracidade das tuas palavras, que fazes sempre acompanhar de um sorriso onde ocultas a possível maldade com uma dose de inocência verdadeira.
Sinto-me culpado desta amizade sexy e fico a pensar na improbabilidade de se ser fiel. Dizes que é tarde e tens de ir dormir, mas prometes, sem fazer figas, que me irás visitar em breve.

Saio à rua e o jornal triste não traz notícias sorridentes. Sento-me no café a observar as pessoas aceleradas que passam, um rapaz de cabelo grande tropeça e espalha livros e folhas pelo chão e a multidão segue apressada.
Demoro-me à mesa com a chávena vazia e mirar títulos cinzentos e penso em como morder a vida. Envio um SMS. Poucos minutos depois, o telemóvel nervoso avisa-me que vens.
Trouxeste o cabelo escondido, no rabo-de-cavalo do costume, a ocultar a magia toda que os cabelos soltos prometem. Naquela noite fomos o mundo todo.
Os copos de um vinho verde, Gatão, doce e suave como os teus lábios, amoleceram os corpos que se deixaram deslizar pela brandura quente da noite.
Comecei por ferver água para o chá e começaste por deixar transparecer dois centímetros da blusa à medida que me abrias a alma.
Fomos desejo ondulante guiado pelas músicas ternas ouvidas no Lamy, deixei a aparelhagem ligada toda a tarde e toda a noite, e mesmo deste lado do Oceano não se perdia nem uma tecla de emoção, as vidas destes desconhecidos tristes eram as mesmas.
Beijámo-nos demoradamente, acendeste um cigarro e adormecemos a pensar que foi bom.
Na manhã seguinte conseguiste ser mais fria que a pedra de gelo que arrefeceu o meu moscatel da noite anterior e foste embora sem fazer barulho.
Continuei perdido no mundo e não foste tu quem me salvou. Durante a noite sonhei com a “Manela”...
Acordei ainda com o sabor daqueles beijos, que me despertaram uma luxúria que não entendi.
Seria excelente que sonhasse todas as noites desta maneira, com mulheres bonitas, dóceis e sensuais.
Era mais que convincente que tinha dado início a uma fase da vida que me excitava e que de outra forma me trazia um sentimento de culpa que me ardia na alma.
Tinha pecado em sonho? Ou teria tido esta iniquidade acordado?
Em sonho ou acordado, tinha cometido um erro que por enquanto não era grave... mas, teria de admitir que os outros, também fugissem ao caminho rectilíneo da vida... nem que fosse igualmente em sonho.

Texto: In "Ano Louco" JC


Imagem: Google

segunda-feira, 27 de julho de 2009

Sonho incompleto


É a realidade. Mas nem tudo é real na nossa passagem pelo universo. Por vezes o sonho parece-nos realidade. A realidade por vezes parece-nos um sonho.
Por vezes sonhamos cada coisa...
Uma noite fui esperar o meu rapaz e alguns colegas numa das escapadelas nocturnas que eles tanto apreciam.
Tinha combinado ir esperá-los ao Largo de Camões, mas como ainda era um pouco antes da hora previamente estabelecida, ao percorrer a rua da escola Politécnica, vislumbrei um lugar de estacionamento, por coincidência junto do Pavilhão Chinês, um milagre às sextas-feiras à noite por aquelas banda do Bairro Alto.
Por ali fiquei dentro do carro, cerca de uma hora, ouvindo rádio e observando o estugar dos jovens de um lado para o outro entre risos e uns tragos de cerveja.
O local fixou-se de tal forma na minha mente que uma destas noites sonhei com o local e como sempre em todas as fantasias, com alguém que faz parte da nossa convivência ou algo parecido.

Os olhos arredondaram-se-lhe. Agora já não se parece tanto com aquela que entrava no Pavilhão Chinês. Bar actualmente na moda da vida nocturna Lisboeta.
Há algo de Paula nela. Na maneira como revira o canto da boca um pouco divertida e na forma como me diz ainda olhando para a janela: “desde os meus catorze anos que os homens são para mim o meu desporto.” Vê-se pela tibieza da carne dos seus braços, a suavidade da textura das suas pernas.
Sinto-as quando as olho, elásticas, mas tenras como a carne de um animal só alimentado a prazer. “Na minha primeira vez tive que sair pela janela da cave que dava para a Almirante de Reis.”
Ri-se como uma menina de catorze anos, mostrando os dentes brancos que rapidamente oculta por timidez tardia. Está finalmente noite lá fora.
A súbita agitação provocada pela passagem do autocarro sobre o alcatrão molhado acompanha a porta que se abre de rompante.
Alguém agitado entra no bar praticamente vazio e fica a olhar para as minhas costas. Sustento o olhar até que um arrepio me percorre a nuca, forçando-me a virar.
A cara de quem entrou, está ligeiramente oculta na sombra, causada por qualquer estranho efeito que me escapa. Fico ali a olhar para ele, este homem alto, por baixo de uma gabardina bogartiana.
“Sim?” Agora a cara sorri e sai da sombra, “Janeca?!”
O que faz aqui o “Janas” que conheci nas “Baútas”?
Está mais alto... e largo. Estranho, só se passaram seis meses.
Januário contorna a coluna que está entre a porta e a mesa e no mesmo movimento senta-se entre mim e a jovem mulher.
“Estou à rasca, percebes?” Diz-me muito perto da cara ainda com aquele sorriso apalhaçado.
Decresceu. Devia ser da sombra. “Lembras os longos telefonemas para Lisboa com uma tipa de Tomar?”
Pára e fica à espera como quem acabou de contar uma anedota e ninguém se riu.
“Vagamente...” De onde terá surgido a terceira cadeira? A rapariga olha os dois com um ar trocista. “Deixou-me... a ISABEL, diz que não tem a certeza... que não que ir para cama comigo!”
Mas pareceu-me ouvir outro nome, apesar da boca do Januário ter sido rodeada pelas letras I-S-A-B-E-L quando pronunciou o nome da dita.
”Está a dar comigo em doido! Ela vai telefonar...” O sorriso palerma não lhe sai da cara. Estava capaz de o esbofetear. O meu telemóvel toca.
“ É ela. Atende que tu já a conheces bem e talvez a convenças.”
Não, claro que não conheço ninguém de Tomar.
O sorriso e a campainha do telemóvel incomodam-me quase à náusea.
A luz que ilumina o bar é fraca, no máximo 25 Watts a pingarem sobre mesa.
Atendo a medo. “Está! João?” A voz rasga barreiras talvez impostas por mim, sem intenção possivelmente. “Isabel... como sabias que estava aqui?”
A voz dela aquece-me uma parte escura e fria algures entre a segunda e a terceira costela. “A tua voz João... é sempre tão doce. Sabes que ao fim de tantos anos continuo apaixonada por ela?” “Guardei um pouquinho numa caixa e quando me sinto só, liberto uma pequena sílaba que aspiro lentamente... já tenho poucas, por isso se não te importas vou guardar todas as frases que disseres a esse telefone.”
Um silêncio. “Com o Januário... é difícil... parece um pouco, como nós naquela última vez nos Açores.”
Fico confuso, da sombra estranha que agora cobre outra vez, a atónita cara do ”Janeca“ … este telefonema… tudo me confunde.
Mas, de uma coisa tenho a certeza: com a Isabel, só estive em Lisboa nos anos que a coisa durou com o Januário. “ Lembraste da lagoa?”
Não estive lá e agora faço memória e lembro-me do cinzento do mar, os seixos muito brancos e dos lagartos pretos de língua vermelha.
Dos cabelos dela ao vento junto ao farol dos Capelinhos. Nele, consigo cheirar o mar e tudo se torna cinzento.
Lentamente, percebo-me a emergir do colchão no qual estive embebido durante um tempo incomensurável.
Os dentes doem-me. Provavelmente estive um longo período de maxila fortemente fechada.
O sonho desvanece-se lentamente, substituído por uma enraizada mágoa, cocktail de sabores conhecidos.
Não repúdio a mágoa. Somos velhos conhecidos, e quando me surge de vez em vez, sorrio-lhe e percebo que o meu mundo é incompleto sem esta companheira de ilusão.
A mágoa, tal como a memória de Isabel, propagavam-se através do Oceano calmo do sonho.
Uma tempestade antiga que afundou barcos escavou furnas em encostas, onde o seu eco ainda se repete nas plácidas manhãs de Junho. Deu voltas ao globo da minha consciência amansando-a e ao tempo com o seu buril uniformizador.
Tempestades tão fortes não deixam de existir.
Mantêm-se como impressões digitais e criam o reticulado labiríntico da irracionalidade da alma.
Esta tempestade velha afaga ainda as margens da minha consciência como uma onda mansa pulsada do centro do imenso Oceano íntimo.
Está sempre lá, mas no ruído da vida acordada, o seu sinal perde-se.
Durante a placidez lisa e cinzenta do sono a mágoa volta como um arrepio sobre o mar aveludado em dia de nevoeiro quando sopra um farrapo de vento perdido.
A boca sabe-me a tabaco. A pele cheira a tabaco.
Não devia ter fumado tanto ontem.

Sempre o tabaco...


Texto: In "Ano Louco" de JC


Imagem: Google

terça-feira, 21 de julho de 2009

Rute, não cresças!



Numa manhã de forte nevoeiro que abraçava Lisboa, F.J., sussurrou-me entre dentes e dois fumegantes cafés:

“Permiti que o coruscante do luar se aproximasse dos meus olhos e parti do Bairro Alto com as minhas mãos emporcalhadas na vergonha.”

Eu não me melindro com facilidade. Mas hoje de manhã no comboio ouvi uma conversa entre duas meninas, na primeira fase da adolescência, quase crianças, que, sinceramente me deixou chocado. Que raio de mundo é que nós vivemos, afinal?
Meninas de doze, treze anos que nem sequer sabem o que é masturbar-se, passam logo para o “vamos ver”.
Passar de brincar com bonecas, para o banco de trás do carro de um marmanjo qualquer, assim, directo, sem passar pela casa de partida, é falsear o jogo do crescimento.
O F.J., amigo de longa data, já tinha desvirtuado um dia uma nena, como se diz nas Beiras, de onde é natural.
Recordo com mágoa a narração, que não conseguiu evitar, por ele e principalmente por ela.
Hoje ser homem não é tarefa fácil. Quando nos abeiramos de uma mulher, devemos fazê-lo com bisturi e luva cirúrgica. Contava-me ele com maresia no olhar e a cabeça encolhida nos ombros como querendo pedir desculpa pelo injustificável.

“A rua estava enfarpelada de arraial, o cheiro da sardinha e do manjerico inundava-me as narinas provocando em mim um sentimento de liberdade festivaleira. De quem seria aquela saia preta que rodopiava de forma estonteante no arraial, e na mente de quem a via.
A música era uma grota que nos invadia os ouvidos, o vinho e a cerveja, a goela. Tal como a saia preta, também rodopiámos os copos em estridentes brindes e o álcool apoderava-se das veias do cérebro e do absurdo.
Havia o esplendor de um sorrir em meia-lua daquela jovem mulher. Inebriado com o flamante daqueles olhos verdes supliquei que me levasse em braços no delírio de uma dança.
A magia do momento caía-nos às carradas pelas faces vermelhas e insolentes de desejo.
Embalámo-nos adunados toda a noite. E nesse frenesim sem escolha esquecemo-nos por caminhos rodeados de silêncio, e duma escuridão conivente.
A ansiedade e o mórbido desejo cabiam-nos como fato em corpo nu. A brisa calava a música e os braços caíram nas dunas da ilusão.
Breves eram os toques dos seus lábios pintados de carmim, persistente o odor do perfume que vinha embalado em gotas de mar que nos salpicavam o corpo de sal temperando ainda mais o nu de roupa e de vergonha. A noite prolongava-se nos teus seios rijos e fartos de sonhos. Era ali que se espraiava a vontade dos excessos.
Libertaste a cor dos seios. A seda do teu corpo, a felpa íntima, a liberdade em fúria dos teus cabelos de trigo.
Eliminaste qualquer pudor e entregaste-me os teus gemidos esfomeados de gente. Perdi-me na voz da razão e atraquei na foz do teu corpo. Num grito escorreu-te a alma em sangue.
Ainda tentei encontrar romantismo na tua face vermelha, mas encontrei uma menina pálida de pavor. Chamei uma razão, mas apenas encontrei uma memória turva de uma saia que rodopiava nos meus olhos sem parar. Fugiste-me desamparada no momento, já feita mulher.
Desta vida ébria levo um travo amargo na boca desses teus olhos cor do mar revolto, que nunca mais provarei.”

F.J. tinha nesse ano de mil novecentos e noventa e dois, trinta e quatro anos, e seis enlaçados a uma mulher, que amou, amava e ainda ama, mas que Deus levou em dois mil e quatro, numa viagem a Angola sem retorno.
Rute completava dezasseis anos apenas em Novembro desse mesmo ano.
Hoje, entendo o desvaire do meu amigo. Crescem depressa demais. As bonecas são substituídas por sapatos de salto acrobático, batom e rímel. Os vestidos, por curtas saias, as blusas, por tops de rigorosos decotes.

“Sabes, eu na pior das hipóteses diria que ela tinha vinte anos.”

Como tu, Rute, muitas meninas semelhantes tentam parecer aquilo que não são. Porque abdicam de brincar? Com que motivo desafiam o percurso do tempo?
Tal como escreveu Philip Chesterfield numa carta a seu filho, “quem tem pressa demonstra que aquilo que está a fazer é demasiado grande para si.”

Eu por mim, concordo com o diplomata e escritor Britânico, e ainda sonho e procedo como uma criança castigada por ter crescido.

Texto: JC

Imagem Google

terça-feira, 14 de julho de 2009

Em busca do tempo perdido #5 (Fim)


Hoje engravidei de sonhos. Se me fosse permitido sonhar sempre que o desejasse voava pela vida toda, escolhia nuvens balofas para percorrer o infinito, descansava nos coqueiros que ornamentam as praias dos nossos devaneios e só descia para nadar em ti. Dar braçadas no teu pescoço intensamente brilhante pela insinuação do perfume que lhe colocas.
A música continua e aproxima as mãos, e a noite ousa transformar-se em madrugada. É demasiado cedo para o arrependimento e demasiado tarde para o abandono, o néon fascinante que se avista no topo dos edifícios ainda nos apaixona. É tempo de uma tragédia sentimental.
Somos dois amantes que se amam loucamente mas que nunca olhámos profundamente nos olhos vazios um do outro. Tinha designado amar-te desde o primeiro dia e isso era tudo o que necessitava.
Dei-te a mão no escuro de um concerto no Coliseu, e tu não te importaste que estivesse demasiado escuro para sentir devidamente quem te tocava. Sabias de antemão que era a minha. Apertaste-a com maior intensidade conforme aumentava a grandiosidade do som da guitarra de João Cabeleira.
De seguida planei o braço uns segundos no ar, hesitando, e aterrei de mansinho como numa flor delicada, os meus dedos no teu colo.
- Amo-te muito! Dizes-me tu.
- Eu também. Respondo de imediato.
- Também gostas muito de ti, é?
- Não! Gosto muito, mais de ti.
- E de ti, não gostas?
- Por acaso, nem por isso...
-...
- Bom... talvez goste daquela parte que gosta de ti!
Corre, foge. Como se fosse possível eu pensar a perfeição. És mais bonita do que aquela Dora da discoteca que à noite era mais graciosa que durante o dia.
Sente o suor que escorre de mim e diz-me boa noite, embora seja apenas tarde e neste cubículo fechado que tresanda a mofo, vem ter comigo de vez, mata a ansiedade que chove em mim, pesada, deixa-me ser teu assim muitas vezes fechado em suor ou então só mais uma vez mas, com o tempo todo, para que o mundo acabe em encantada perfeição.
Num reflexo de criança, levo os dedos ao nariz para cheirar o líquido quente, melodioso com cheiro a ti e este percorre-me uma das narinas. Com pouco esforço, puxo a narina que quer ceder e toda a asa que compõe o meu nariz aquilino.
O ruído ensurdecedor de uma buzina de um vizinho soou estridente e provocou eco na minha cabeça completamente zonza.
E, ao acordar, dei-me conta que não estavas. A cama, com os lençóis brancos molhados, exalava um cheiro que reconheci como sendo o teu. Mas como?
O odor era o mesmo que trajavas no dia em que te conheci, e te sentaste a meu lado naquele autocarro.
Quando despertei finalmente, percebi que deras lugar a um pedaço de mim, descomposto em ti.
Embora para todos não passasse de um reles que passava os dias isolado, algumas noites deambulando pelas velhas calçadas, e noutras só com a intimidade nas mãos, enquanto tinha sonhos eróticos com as coxas das mulheres mais velhas que conhecia, agora sabia o que era saudade, amor, desejo e paixão.
Ainda atordoado de sono, os meus olhos, reflectiam aquele pedaço de papel que te tinha entregado, como me entreguei a ti, todos os dias e noites durante meses e dois anos.
Afinal, não te irei um dia contar a nossa história, nem morrerei no teu aconchegado regaço.
Terá algum aristocrata cobiçado a tua simpatia, o teu amor, o teu ventre?
Nada sei de ti miúda da franja.
Voltei a deitar-me sobre o catre de superfície plana e rija. Antes de o fazer estendi com um ritual profano uma colcha de riscas vermelhas. Uma coberta feita pela minha avó materna, toda ela de retalhos que abrigou o meu corpo derrotado. O livro já meio desconcertado pelas sucessivas leituras estava a meu lado. Coloquei a brochura sobre o ventre. Sei que apenas posso esperar um milagre de poder contemplar a minha menina da franja. O sono entrapou-o enlaçando-o em frangalhos de memória. Mas ainda assim sentiu que pedalava com força na velha bicicleta, por campos sem fim. Sem vislumbrar o se sonho, o rapaz do segundo direito pedalava cada vez com maior intensidade. Exausto quedou-se junto a uma fonte de água límpida e cristalina. A garganta sabia-lhe a sarro. O pó invadia-lhe a traqueia. Sentia um cansaço descomunal. A água não conseguia furar o muro de pó que tinha na goela. Sentia-se asfixiar, as cores da natureza antes vivas e fortes, esbranquiçavam como um caldo de cal. Tudo era branco. O Pencas sentia-se mal, muito mal. Dois dias depois eu e Dora fomos dar com o corpo enrugado do rapaz. A ausência de ruído despoletou a curiosidade feminina. A presença do mistério aguçou a curiosidade masculina.
O corpo do rapaz do segundo direito estava vestido com um fato preto, o único que tinha, mas que estava imaculadamente limpo. Desta vez não pegou na guitarra, e junto dele apenas um simples livro gasto e esmaecido o acompanhou na sua última viagem de amor, no seu derradeiro sonho.
Existiam posters de meninas de franja e cabelo preto por todo o lado nas paredes da estreita e esconsa sala. O silêncio tem dias, e em determinadas situações consegue ser mais pesado que toda a força que possamos querer ter.
Dora e eu deixámo-nos ficar, imóveis e mudos, junto do corpo inerte do infeliz rapaz.
Lá fora uma discussão animava a rua, cá dentro, nós éramos estátuas de gente sem nada, estátuas inundadas de melancolia. Eu ajoelhei-me e rezei pela alma azarenta daquele jovem. Dora imitou-me a intenção e o gesto. Na realidade, existe apenas uma condição para morrer… é estar vivo. Tinha vinte e dois anos de extravagância, muitos de solidão e certamente alguns de desilusão.

Era uma madrugada indistinta, sombria e chuvosa como qualquer madrugada de Dezembro, quando a campainha ribombou no segundo direito.
Surpreendi-me com aquele toque de campainha e como flutuando no espaço, dei por mim a espreitar por uma pequena brecha da janela do quarto. Dora dormia em perfeito mutismo.
Uma jovem de longa franja estava prostrada na soleira do prédio e olhava para cima. Pestanejava frequentemente devido aos grossos pingos de chuva que caiam em cadência.
Com as costas da mão direita, esfregou os pingos de chuva dos olhos afastando a franja que lhe cobria metade do rosto e uns olhos esverdeados sobreluziam no rosto simples, mas belo como uma aguarela de William Turner.
Depois de ver aqueles olhos compreendi que por vezes não sabemos apreciar o que de bom se nos é oferecido num olhar! Entendi que saber olhar é amar! Saber olhar... é compreender que a dimensão de um olhar é incomparável.
A expressão daquela jovem e do seu esbelto corpo estava somente num simples olhar.
E num simples olhar percebi o motivo pelo qual o rapaz do segundo direito já não o ocupava.


FIM



Texto: JC


Imagem: Google

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Em busca do tempo perdido #4


Estava insolente, melancólico. Deitado no sofá adormeceu de cansaço e tédio. Incutido pela façanha amorosa de Noah e Allie imaginou-se com a cabeça no colo da jovem de franja e esperava que ela lhe cofiasse o cabelo enquanto ele aflorava ao de leve, as riscas vermelhas das meias que lhe cobriam as coxas bem esboçadas.
Sentia os desenhos que ela lhe fazia com as unhas sobre o pescoço. Desenhos imperfeitos enquanto lhe dizia “adoro-te” e, que nos seus braços morreria. Ele pensava que de qualquer outra forma também morreria. Queria e gostava de um dia morrer naquele regaço. Uma estúpida e deprimente canção de amor percorria o sonho e cada veia dos seus corpos quietos, em surdina a escutá-la, quase que enganavam quem os visse: talvez pensem que nos amamos. Talvez um dia.
Viajo no teu regaço como um abrigo onde levas contigo os meus olhos de cão triste. Sinto-me criança de novo. Vejo-te uma menininha de saia curta e meias requintadas. E, a franja vem desse tempo?
Avisto dois catraios andando de bicicletas… A pularmos o muro impossível e a corremos sem parar pelo meio dos pinheiros em fintas invisíveis e imprevistas e a terra forrada a mato é o destino fatal quando o anjo do equilíbrio nos falhar. E tanta vez nos falhou.
Enche os bolsos dos calções de nozes, não esqueças… traz o mapa do tesouro, e não desprezes nunca das nozes… podem-nos salvar a vida. Aprendi com o meu avô.
Lá fora, os caracóis insistem na vida, fogem da escuridão e espraiam-se ao sol matreiro. Arrastam-se lentamente pelas folhas verdes, sem horários nem obrigação de voltar para casa antes das cinco para o lanche de marmelada.
Recordas-te daquela senhora que tinha dois filhos trintões e solteirões a viverem lá em casa? E da cena da caixa de correio que ela abria serenamente e donde saiu uma lagartixa e um susto que a levou ao hospital? Sabias bem que a senhora era fraca de coração!
Mas o tempo avança acutilante, e mesmo nos sonhos, apressasse a correr deixando-nos por vezes tristes por despertarmos para a verídica existência. Agora, neste momento já estás vestida com aquelas roupas esquisitas.
Cresceste … e eu?
Eu, não quero crescer. Quero ser sempre o jovem que sonha, que tem medo de envelhecer.
Não quero um dia narrar-te a nossa harmoniosa história enquanto te observas ao espelho e ele te devolve, uma imagem de demência.
Não quero descrever a nossa história a alguém que não a alcança.
Não! Prefiro recordar-te como a menina bonita, com a franja a cobrir-te os olhos esverdeados, saia curta, de coxas bem torneadas e cobertas por umas meias às riscas vermelhas. A menina de roupas extravagantes.
Lembras-te o que te disse naquele dia magnífico Agosto? E a humidade toda que as coxas entrelaçadas prometeram?
Tenho vontade de me deitar contigo agora… e não após a assemia te ter invadido o débil corpo devorado pela doença.
Desejo deitar-me a teu lado, na mesma cama que te acolhe e não te deixar partir, quando cerras os olhos, e eu cruzo os braços sobre o ventre, à tua espera sentindo um frio funesto invadindo-me o corpo e a alma.
Olhas-me nos olhos, como se toda a verdade estivesse neles e explicas-me que as crianças sorriam e cantavam a alegria em gargalhadas, tal como tu o fazias.
Um dia que está a uma imensa distância, como também imensa é toda a água que hoje te salga a pele. Chegaste agora a casa, vinda da praia e uma estúpida alegria baila-te no corpo, na epiderme e nos olhos. Deitas-te na cama. O ténue vestido de linho a antever-te a nudez. Por baixo do vestido reduzido, adivinho a intimidade que hoje ainda me entregarás.
Com a voz que desconheço contas-me que as crianças de seguida compraram gelados; que pegaram nas bicicletas e andaram, andaram, andaram. Deram às pernas nas bicicletas até a pele ficar abrasada e os bafos saírem-lhes pela boca, como as chaminés da fábrica que, da janela do quarto, vemos muito ao longe. Estás feliz, uma sinestesia eufórica embriagou-nos os sentidos e quase dizes amo-te, mas quando peço que repitas, devolves um anda cá. E eu vou. Inseguro, com medo de tanta alegria, preparado para o pior.
Abraço-te. Digo adoro-te, e tu beijas-me o lábio superior, trincas-me o ombro e dizes, “esta vai deixar marca” e aí, ainda fora de mim, cheio de tanta atenção tua, só penso que tens razão, que este momento vai mesmo deixar marca. É certo e sabido que tão cedo não te verei assim feliz.


(Continua)


Texto: JC


Imagem: Google

domingo, 12 de julho de 2009

Em busca do tempo perdido #3


Os dias passaram, as noites ousavam transformarem-se em madrugadas à espera do Verão, a cidade ficou vazia de gente. Tão despojada, como o seu coração que percorrias as ruas de Lisboa, na tentativa de encontrar uma franja sobre uns olhos verdes, ou umas coxas protegidas por meias riscadas de vermelho. O vermelhar do sol deu lugar ao cinzento do Inverno, e as pessoas fecharam-se em casa.
Nem vivalma nas ruas. O frio e a chuva submetiam os seres vivos ao recolhimento. As memórias dos olhos verdes da rapariga traziam-lhe a esperança inalcançável.
Mesmo debaixo da intempérie, Pencas percorria a cidade de lés a lés em busca do sonho, de um rosto, de um nome. O inverno deixou de novo a cidade e o verão acampou durante uns tempos em Lisboa.
O rapaz do segundo direito voltou a viver imerso no pó dos livros que contavam histórias de amor impossíveis e tristes. Amor de Perdição do malogrado Camilo Castelo Branco foi um deles.
Todavia, a imagem da menina do autocarro bailava nos seus sonhos com o sorriso que ela plantou para sempre no meu rosto.
Releu dezenas de vezes o “Diário da nossa Paixão”, e sempre que o tornava a ler, a silhueta da jovem sem nome invadia-lhe a memória. O verde dos olhos dela faziam-lhe doer o coração e a alma, mas acalentavam-lhe a esperança.
Imaginava o fascinante cenário da história como um quadro de Monet.
Verdadeiro encanto... a água... os nenúfares... e por fim os cisnes e toda a imagem fica envolvida num tom rosa mágico.
Ensaiava o que sentia através das personagens com maresia nos olhos e o coração inundado de dor.
A agulha já raramente percorria o vinil. O silêncio perpetuava o segundo direito, do número dez, da estrada de Benfica.
Numa noite, o rapaz vestiu um fato preto, o único que tinha, mas que estava imaculadamente limpo, pegou numa guitarra que tinha esquecida no exíguo roupeiro entre meias e sapatos, e colocou-a ao ombro.
Nessa noite, triste de nuvens e sem estrelas, o rapaz do segundo direito vestiu o fato, saiu de casa com a guitarra ao ombro e passeou orgulhosamente sobre o largo do Rossio em busca do tempo perdido.
A noite não estava fria, mas num instante, a brisa transformou-se num arrepio que varreu as lâmpadas municipais. Em redor não passavam carros, o silêncio cobria a noite. Sentou-se nos degraus frios e gastos do antigo teatro D. Maria II olhou para o céu e soaram alguns acordes.
O rapaz do segundo direito sabia que aquele momento breve numa tarde de calor tinha sido o amor, igual àquele que tinha lido tantas vezes nos livros, daquele amor que levava à loucura, ao desespero e à morte.
O Pencas sabia que a vida, ao contrário de alguns livros, não tem finais felizes. Quando se sentiu cansado dos acordes musicais, decorados impacientemente no braço da guitarra, foi até à paragem do autocarro para rapidamente se esconder em casa.
(continua)
Texto: JC
Imagem: Google

quinta-feira, 9 de julho de 2009

Em busca do tempo perdido #2


Um dia, fintou a rotina e saiu de casa por volta do meio-dia. Os olhos cobertos por uns Ray Ban comprados numa banca aciganada para os lados de Sintra desempenhavam o seu papel, mal e porcamente. É que aqueles olhos, apenas estavam habituados ao brilho da lua.
Apanhou um autocarro que o vomitou no Rossio. Há muito que não admirava aquela praça com a luz do sol.
Subiu o Carmo e quedou-se junto a uma livraria. Entrou e folheou alguns exemplares que se encontravam nos escaparates.
Constatou que estava mesmo desactualizado. Aqueles livros e autores nada lhe diziam.
Que pobreza, nem “Os Miseráveis de Victor Hugo” encontrava por ali.
Continuou a olhar os exemplares escarrapachados na montra. Vislumbrou alguns dos volumes de “Em busca do tempo perdido de Marcel Proust”. “Algo de jeito…” ruminou ele entre dentes.
Já um pouco fastidioso dirigia-se para a saída, quando reparou na capa de um livro. Parou, retirou os óculos de sol, folheou o volume várias vezes num ritual já memorizado, notava-se pela forma descontraída e metódica com que o fazia, e junto à caixa disse: “Levo este!”
Saiu da livraria e apanhou um autocarro da Carris. Sentou-se num dos bancos livres na traseira e sem dar atenção a quer que fosse, começou por folhear de novo o livro com tal empenho que dava a impressão que procurava algo no miolo daquelas páginas.
Abstracto, não notou que ao seu lado, uma jovem se sentara bem juntinho a ele. Era uma rapariga mais nova, bonita, com uma franja a cobrir-lhe os olhos esverdeados e no conjunto sobressaía a saia curta que deixava escapar umas coxas bem torneadas e cobertas por umas meias às riscas vermelhas. Era para o baixo e um pouco estranha na forma de vestir. As roupas um pouco extravagantes não impediam, mas tentavam disfarçar, uma beleza também ela singular.
Um aroma a sândalo invadiu as narinas que terminavam o longo nariz do rapaz.
Olhou para o lado, sempre coberto pelos óculos de sol, que lhe montavam o nariz e lhe cobria as lágrimas dos olhos pouco habituados aos raios solares.
Ambos permaneceram em sepulcral silêncio até que Pencas, atrapalhado, lançou um valente espirro que ecoou e percorreu todo o autocarro.
Ainda com o rosto e o nariz ruborizados, o jovem lançou um olhar acanhado para o lado e esboçou um sorriso.
Atravessou os esverdeados olhos da jovem e ficou ainda mais nacarado. Recebeu na volta do correio, um sorriso esbelto como a silhueta coberta pelas roupas estroinas da rapariga.
Então reparou que ela estava a ler o mesmo livro que ele colocara de novo debaixo do braço, enquanto tirava um lenço e o passava pelas largas narinas. A mesma encadernação, cor e letra, não lhe provocavam incertezas… “The notebook de Nicholas Sparks”, era o livro que ambos traziam. Não tinha justificação por ter adquirido um livro recente. O jovem não morria de amores por estes autores da actualidade.
Os dois entreolharam-se e sentiram que aquela não era certamente a época deles, nem o livro que ambos traziam fazia parte deles. Sabiam. Sabiam que ambos viajavam no tempo cavalgando folhas amarelecidas de livros clássicos. Ele sentia-se um alfaraz em tempo de guerra.
Talvez nunca encontrassem o tempo e lugar ideais, mas as jornadas valiam sempre a pena.
A menina das meias às riscas prolongou o sorriso mais do que o habitual e o rapaz do segundo direito deixou-se afundar na água quente dos olhos verdes e interessados.
Ela levantou-se, ele deu-lhe um papel com uma morada: número dez, segundo direito, estrada de Benfica.
(continua)
Texto:JC
Imagem:Google

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Em busca do tempo perdido #1

Adoro Lisboa. Não sei se é a paisagem pitoresca, as figuras ambulantes que a percorrem, a contradição entre prédios a cair por falta de conservação, rodeados por edificações de linhas planas e hodiernas, ou se os pombos que conspurcam por toda a cidade as estátuas dos ilustres perecidos dando um aspecto esverdeado às mesmas, ou se as rocambolescas peripécias vividas neste grande palco, mas fascina-me.
Quando conheci a Dora numa discoteca, escura e apinhada de gente arranjada e bem vestida, não imaginei vê-la agora assim. Ela era gira. De noite era mais e quando a vi de dia pensei que nem tudo o que parece é.
Dora era afeada e por essa razão, ao fim de alguns meses de prazer, o contentamento diminuiu e os nossos encontros escasseavam no seu ninho para onde tinha levado alguma farpela e um pedaço da minha alma, por súplica dela.
Como num pesadelo disfarçado ou como naquela música conhecida dos Supertramp, nunca se levantava a tempo do pequeno-almoço e tinha que ir embora mais cedo que as aves migratórias.
Deixava no ar o perfume da aventura noctívaga e aquele último olhar vincado a lápis e rímel rasca que se pega e não nos quer largar por muitos anos que se possam viver. Num simples gesto atirava com a andrinopla para o chão, um breve “vou”, e num ápice a porta aferrolhava com um estrondo que fazia tremer o chão desbastado pelos anos e pelos passos cadenciados certamente pelas almas que o tinham já habitado.
Era um apartamento acanhado, mas bem decorado embora na verdade não tivesse grande vizinhança.
Todavia de que nos servia isso, da janela via-se o entulho das obras, não sei onde havia tantas obras para haver tanto lixo, às vezes o pó entrava-nos pela fresta da cozinha que tínhamos de ter fechada e passávamos assim dias sem ar de respirar, só ar de gente, ar já gasto, se o ar era gasto não sei, mas sei, que não era bom.
Mas como alguém me diz sempre, “Um dia a seguir ao outro”. E eu assim faço!
***
Nesse prédio envelhecido de dois andares prostrado na estrada de Benfica onde emparelhei meia dúzia de meses, conheci um jovem de comportamento pouco ortodoxo.
Habitava o segundo direito, ou melhor via-me a mim de forma superior, pois Dora partilhava o primeiro direito com o Renato, um colega de faculdade. Eu, era apenas um intruso com direito a catre, quando ela por compaixão não se enrolava com o Renato, ou resolvia passar a noite na discoteca e regressar de táxi a altas horas da noite, com um cheiro insuportável a etílico martelado.
O jovem, que mais tarde vim a saber ter sido baptizado com o nome de Alberto, era simplesmente conhecido por Pencas, devido à peculiar preguiça portuguesa e à presença ornamental de um apêndice respiratório um pouco anormal que ostentava na frente do rosto avermelhado.
O Pencas dormia de manhã, acordava ao fim da tarde e vivia durante a noite. Para além de ser noctívago, também tinha um penteado esquisito, uma marrafa que fazia lembrar um Sioux. O rapaz era único, enfarpelado em mistério e segredos, e ninguém sabia o que fazia. Desconfiavam mesmo que nem sequer tinha cartão do cidadão, como se designa actualmente.
O segundo andar do prédio de Benfica onde o Pencas se refugiava era um gaiola apertada onde se amontoavam um canapé, livros ornamentados com pó, algumas fotos antigas e imensos discos de vinil. Naquela fabulosa colecção de discos estavam incluídos todos os negros americanos que fizeram a história da música do século vinte. Os discos foram herdados de um avô, um velho poeta que, numa noite bêbada, teve morte trágica.
O Pencas passava dias inteiros fechado em casa e horas a sentir toda a música do mundo, que para ele terminava no início dos anos sessenta. Para ele, o Maio de 1968 não tinha acontecido. Vivia solitário e isolado da vida actual de Lisboa. Enclausurado no cubículo, não conhecia ninguém. Era uma Carmelita que dedicava a vida à crença da música da poesia e de alguns romances, essencialmente os clássicos.
As estações do ano passavam por ele sem que se apercebesse. Quando chovia, o Pencas alheava-se da meteorologia em casa. Observava através dos vidros molhados e estreitos da janela, as ruas vazias. Depois, enroscava-se no sofá, a folhear um livro ao acaso e a comer pêra enlatada com a data de validade ultrapassada.




(continua)


Fotografia: António Feliciano