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quinta-feira, 9 de dezembro de 2010


Já senti a vida demasiado perfeita, para ser contada, como numa história, num conto de embalar.

Já acordei com o roçar dos teus cílios nas minhas costas como um brando bater de asas.

Já amarrotei os meus pensamentos e rasguei os meus sentimentos.

Já ouvi o bater do coração na minha pele.

Já experimentei os teus braços envolverem-me como raios ao nascer da manhã.

Já fiz acordes no seio do teu pescoço.

Já te afaguei o ventre como as notas de piano na memória dos dedos.

Já cerrei os olhos para o sonho chegar.

Já deixei a maresia envolver o meu corpo e o som das gaivotas inundar-me de silêncio.

Já senti de modo devasso roçar em mim o dia.

Já muitas vezes o silêncio foi o nosso melhor amigo.

Sempre que as palavras não ecoam, os olhos não vêm e apenas o coração dói, não digas nada porque sem palavras, não há sofrimento.

E, já te divia ter dito:

Quando te sentires isolada numa noite de inverno, ampara este meu texto bem apertado junto ao peito para eu poder alentar com um beijo cálido o teu coração e assim não me perder no desassombro do esquecimento.


quarta-feira, 3 de novembro de 2010

O preto fica-te bem...


Por causas externas e alheias à minha vontade, mas que têm tudo a ver com a preservação da minha privacidade, este blogue esteve temporariamente encerrado.



Obrigado

Ó papão vai-te embora,
de cima daquele telhado,
deixa dormir o menino,
um soninho descansado


 
Parte 2


Gonçalo Nunes era médico de cirurgia vascular a rondar os cinquenta anos, tinha um filho que vivia com a ex-mulher, figura simpática e com um rosto enovelado donde sobressaíam uns olhos grandes e vivos, muito escuros.
Após o jantar, e sempre que a vida profissional o permitia, tinha o hábito de ir até um pequeno bar na zona central de Belverde.
Uma noite sentou-se ao balcão, como de costume, e pediu o habitual: um café e um whisky simples.
Pouco depois sentou-se junto dele, com um banco de intervalo, uma mulher vistosa, elegante, de cabelos loiros e pele branca. Aparentava uns trinta e poucos anos e aquela cara bonita não era estranha ao Gonçalo. Usava óculos escuros, mesmo dentro do bar, que lhe ficavam muito bem.
A mulher, ainda sentada e petrificada no carro começou a rever a sinopse do filme que a levara num pesadelo àquele lugar. Sempre que revia a parte final do guião concluía que teria de ir até ao fim. Ser protagonista daquela película até ao desfecho. Relembrou a primeira vez que lhe ouviu a voz forte e timbrada.
- Desculpe! Posso sentar-me neste banco? – Perguntou ele à desconhecida enquanto se adiantava e ocupava o assento ao lado da mulher.
- Certamente.
- Não a conheço! Mas a sua cara não me é estranha...
- Não sei… Não tenho ideia de o ter visto alguma vez… E nem moro para estes lados…
- Pois! Não sei - Fez uma pausa e continuou - É a primeira vez que vem a este bar?
- Sim! Começava a estar farta de estar em casa à noite, mesmo com a companhia da TV e da Internet – disse Gisela soltando uma risada discreta - É a solidão da vida moderna…
- E que quer beber?
- Apenas um café… Se não se importar…
- Obviamente que não. Beba o que quiser.
Ambos tomaram o café em tétrico silêncio, ouvindo-se apenas o riso implicante de uma jovem ruiva que bebia mais uma das muitas cervejas já entornadas no estômago. Ao lado um jovem que à primeira vista parecia rapaz, mas que levantava sérias dúvidas tais os abanicos que emprestava ao corpo.
- Bom, tenho de me ir embora! Está a fazer-se tarde.
- Certamente. Quer que a leve a algum local em especial? Perguntou o médico.
- Não, muito obrigado! O meu carro está lá fora.
- Obrigado pela sua companhia. Gostei muito de conversar consigo – disse Gonçalo.
- Eu também!
Gisela levantou-se e airosamente sumiu pela porta do bar, deixando um etéreo perfume que invadiu a atmosfera e as narinas do médico.
***
Durante meses apenas o odor incrustado no nariz de Gonçalo o fazia recordar o rosto daquela bela mulher.
Os dias passaram e correram numa rotina constante. Na mente de Gonçalo relâmpagos de saudade daquele momento... Da conversa que não foi terminada.
- Pois é, se não visse o teu carro, nada dizias! Exclamou o médico enrugando a testa em sinal de censura.
- Ia ligar a dizer que tinha chegado. Afinal, isto é longe p’ra burro…
- Longe? São apenas cerca de quarenta quilómetros.
- Como conseguiste mesmo o meu número de telemóvel? Perguntou Gisela na iminência de uma resposta aceitável.
- Conheço muita gente… e este País é uma aldeia… Agradeço o teres vindo. Rematou Gonçalo fintando a pergunta.
- Eu é que te agradeço o convite.
- E então… Entramos? Vais sair do carro?
- Desculpa. Claro que sim…
Gonçalo abriu a porta da Audi ao mesmo tempo que fazia uma espécie de vénia. Gisela soltou o seu cingido vestido preto e deu-lhe a mão.
Só tinha uma hipótese: Ir!
Entre as várias opções que lhe estavam a ser impostas, o tempo tornava-se cada vez mais escasso e a sua escolha teria de ser imediata, ou ficava na sua crisálida claustrofóbica sem qualquer evolução vivendo em função e consoante os desejos de outros.
Depois da tomada de arbítrio de viajar até Belverde, apenas e só uma solução: Ir! E Gisela foi mesmo.
O médico agarrou-a pela cintura e apertou-a contra si, enquanto se dirigiam para a bonita e confortável casa.
- O preto fica-te bem! Exclamou o médico com os olhos esbugalhados e fixos contemplando-lhe a silhueta.
Ele procurava a todo o custo as chaves nos bolsos apenas com a mão que lhe restava livre.
Após alguma luta, a chave penetrou a ranhura e o calcanhar foi suficiente para fechar a porta.
Ambos se beijavam com uma avidez violenta, enquanto o médico lhe aflorava os seios perscrutando o decote do vestido.
Riam, titilavam-se de tal modo que foram esbarrar num sofá de pele cor bege e onde ele a entornou suavemente e se precipitou a banhar-se no seu corpo já desnudado.
Levantaram-se, e colados entre si foram para o quarto onde ele se acabou de despir, entre mordidelas, beijos e gemidos.
Gisela apertava as suas pernas por cima dos rins dele, de forma a ser ela a guia-lo para dentro de si. O suor pingava das têmporas do médico que se contorcia em movimentos cadenciados como as ondas de um mar encrespado.
Por vezes os gemidos eram interrompidos por exclamações de um frenesim instintivo.
Quando ambos se quedaram permaneceram ainda por um tempo colados, a arfar exaustos e alheados por uns minutos.
Gonçalo beijava-lhe a nuca enquanto a sua mão lhe cobria um dos seios.
- Este calor é insuportável. Devia cair uma zerbada daquelas que limpassem bem a atmosfera.
- Que chovesse?
- Sim… é uma expressão de Trás-os-Montes e ouvi-a o meu pai dize-la várias vezes.
- Não sabia! Exclamou Gisela rindo e esfregando o nariz no de Gonçalo.
A tarde arrastava-se, como a tartaruga, molengona, sob a capa fina dos abraços de calor de Agosto. Deitados e completamente desnudos foram percorrendo as horas em diversas e heterogéneas cavaqueiras regadas por um vinho branco da zona de Azeitão.
Os corpos animosos pelo néctar dos Deuses voltaram a amar vezes sem conta até ao esgotamento físico.
O ambiente do quarto subia de temperatura após cada investida carnal o que fazia com que ambos limpassem a cortina de suor que persistia em lhes cegar os olhos e lhes secar a garganta.
- Gi… vou fumar um cigarro. Disse o médico levantando-se e enfiando um robe que adejava pelo quarto. Ela levantou as sobrancelhas e arredondou os olhos, querendo deixar transparecer também o mesmo desejo.
- Dás-me um também? Inquiriu.
Ele acendeu outro cigarro e foi meticulosamente e com gesto cirúrgico colocar-lho entre os lábios escarlates e carnudos.
- Gonçalo! Estou estafada e cheia de calor. Podíamos tomar um banho e sair um pouco. Espairecer… Queres?
- Oh minha doce… Claro, é para já. Concordou o médico largando uma fumaça e dirigindo-se para a casa de banho da suite.
Gisela permaneceu ainda deitada em posição fetal como querendo abrigar-se de algo.
Os olhos denotavam um aspecto triste e o semblante era de preocupação e nervosismo.
- Aproveita o cigarro que eu sou rápido… Gritou o médico com a voz já represada pelo escorrer da água.

(Continua...)

domingo, 26 de setembro de 2010

O preto fica-te bem...



Um dia recebi um email...

“Escreve-me um fábula, um poema, uma frase, uma palavra… o que quiseres… tenho saudades de te ler! Pode ser num guardanapo pingado de café…”
ET


Num guardanapo pingado de café, resolvi escrever uma simples frase.
Continuei a rabiscar em guardanapos, sempre que me ocorria uma ideia, um pensamento.
Assim nasceu este conto ficcionado, ou talvez não.
Um conto que quer ser a própria vida. Sem rodeios ou máscaras, crime, amor, ódio, vingança, incesto, violação, homicídio e muito mistério irão confraternizar em conjunto com as diversas personagens num misto de dor e prazer.
Lágrimas de sangue corroídas pelo tempo que se comprime em demasia. E apenas me cabe dizer: “Que o preto fica-te bem…”


Parte 1
Gisela

Enquanto os quilómetros iam passando na berma da estrada, Gisela mirava o horizonte limpo na manhã por estrear.
Uma mescla de cores em azul e rosa alaranjado diziam-lhe que em breve o sol iria aparecer.
Paira um silêncio branco, belo, um silêncio puro pendurado nas copas das árvores recortadas como num quadro de Claude Monet em tons pastel.
Ao longe, o céu aparece laranja avermelhado. E, pouco a pouco, uma imagem disciforme em chamas se vai mostrando e sobe lentamente, prendendo toda a vida existente na sua contemplação.
Deixou-se envolver pela pulcritude matinal, sentada no mutismo do carro.
Apesar da beleza que o céu vestia sentia-se estranha naquele dia. Tudo no pequeno mundo que lhe sustentava a vida parecia ir ruindo pouco a pouco. Na verdade, não saberia dizer se era essa a causa daquela sensação de se olhar como se saísse de si. Todos os ruídos da madrugada se ouviam, como se nela se tivesse feito o silêncio.
Foi então que a solidão bateu à porta.
O braço estende-se para o exterior da janela do carro, como que tacteando a ausência e a vacuidade que a invadira. E, suavemente, o corpo entrega-se, rende-se e, envolto no mutismo do alvorecer, deixa-se deslizar para o espaço entre o sonho e a realidade.
Gisela continuou a ver-se, espectadora de si. Estranha. E olhando-se, àquele vulto que lhe parecia diferente do que via para lá do espelho retrovisor, percebeu da debilidade de tudo o que a envolvia. Da possibilidade de tudo partir, de um momento para o outro, como qualquer vidro. Nem pensou em cristal. Isso seria sonhar-se. Ela via-se claramente como parte de um todo, sem ilusões. E via-se frágil.
Há que ordenar ao corpo que batalhe contra a letargia e que inicie mais um dia.
“Merda preciso respirar! E andar! Andar até que o corpo me dê tréguas e descanso.”
O motor da Audi roncava e os pneus relinchavam a cada curva.
Os pensamentos tolhiam-lhe a mente, não lhe dando espaço para mais nada. O alcatrão era percorrido por uma tactilidade inata.
“Preciso urgentemente de um sono tranquilo e não desta intermitência entre o sono e a vigília que me derreia o corpo e me marca os olhos.”
Olhou para o cinzeiro do carro e reparou que estava apinhado de cigarros meio fumados, meio consumidos. Como a vida, que a ia consumindo aos pedaços e que a corroía por inteiro.
O coração ia-lhe bombeando lembranças e inundando-lhe a alma de memórias.
Porque teria aceitado aquele encontro?
Sabia que tanto o marido como ela há muito que não encontravam o “cruzamento” entre o ontem e o amanhã.
Tudo tinha desmoronado.
“Preciso respirar! Andar! Inspirar o ar escuro da noite e perder-me entre casas e ruas desertas. Depois deste encontro irei para uma esquina esperando o amanhã. E esperar o amanhã como se esperasse alguém. Como as putas. Mas puta é esta vida que me consome. As palavras já me sabem a mofo e têm odor azedo como fel.”
Gisela tinha um casamento estável e feliz. Um casamento dos tempos hodiernos. Tão moderno como a maioria dos amigos com quem convivia. A estabilidade mantinha-se porque não se viam. A felicidade resistia porque sabia que não existiam dias perfeitos. Nem aqueles em que o sol brilha e se reflecte no mar azul.
Nem que uma ternura infinda a encontrasse ela sabia que não era a felicidade e por essa razão deixou de procurar dias perfeitos e tentou unir pedacinhos em que a vida se diz bela…
O tédio dos anos corroía uma relação branda e pouco, ou nada estimulante.
Todavia, o que Gisela pretendia era encontrar de novo o cruzamento perdido e descruzá-lo, corrigi-lo, rectificá-lo, torná-lo recta, numa estrada limpa de agressivas memórias.
Ligou o rádio. A música soa, a solidão recua, como se estrategicamente procurasse só um tempo melhor para se impor.
A melodia reconfortou-a, e quando se apercebeu estava no local combinado. Uma enorme mansão erguia-se à sua frente. As paredes amareladas e parcialmente cobertas por enormes glicínias dava à casa um semblante estranho e enigmático.
“Que raio estou aqui a fazer?”
Quis recuar. A indecisão cobriu-a totalmente. Na verdade a sede de vingança inundou-lhe as veias de água gélida, em vez do sangue rubro de outrora. Sentia o sangue envenenado de mágoas, entoando cânticos trémulos e fúnebres.
Hesitante, continuava amarrada ao banco do carro. De soslaio olhava o telemóvel que permanecia mudo.
Gonçalo saiu da casa apalaçada onde vivia e caminhou pela poeirenta estrada de alcatrão feito de verde relva.
Era um homem de elevada estatura e porte altivo, de pele branca, vestia um terno azul-marinho como o céu num dia de sol.
Mantinha uma passada cadenciada e firme como um boneco de trapos e dirigia-se para a Audi de cor cinza, indiferente aos olhares que ela lhe dirigia.
Gisela acenou com o braço esquerdo e esboçou um frio sorriso. Ele devolveu o sorriso, mas assentou-lhe mais alguma ardência.
- Fui à janela e vi o carro! Exclamou. Ela voltou a sorrir palidamente.


(Continua, porque a vida prossegue, mesmo que seja madrasta)

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Hoje sinto-me… como ontem…


Hoje sinto-me… como ontem.
Sinto-me uma barca sem remos que deriva nas águas ansiosas sem poder mudar a rota.
Um soçobro disposto a permitir que os seus alvéolos se inundem de água para que o fim chegue mais célere.
Um inço que abusivamente cresceu no quintal do teu contentamento.
A vida começa a pesar, o caminho agreste aproxima-se da meta há muito delineada.

Hoje sinto-me… como ontem.
Hoje sou um homem triste, ontem fui alguém melancólico.
Sei que deixo nas ladeiras que galgo os meus passos trémulos e vagarosos da senescência.
A soledade penetra o meu corpo como agulhas, que me rompem a pele gretada pelos anos.
As minhas mãos afáveis, já só encontram a futilidade…

Hoje sinto-me… como ontem.
No meu cérebro existe uma réstia de recordações que me fazem viver. Espreguiço o meu olhar em memórias envelhecidas. Recordo-me de ti.
São tantos os objectos que me assaltam a lembrança de tempos tão longínquos; são tantas as películas que me fazem sorrir ao sentar-me naquela época em que a felicidade era mesmo feliz e não amargurava.
O tempo tinha outro sabor. Os dias ditosos pareciam não ter fim, os menos bons, eram poucos, e nem tinham, o tempo que o tempo tem, para nos perturbar.

Hoje sinto-me… como ontem.
E hoje como ontem relembro a primeira vez que te vi. O primeiro dia que te amei, a primeira noite em que te plantei no jardim do meu coração, no íntimo da minha existência.
Encosto o meu sorriso à tua recordação e deixo-o escorrer por todo o teu corpo, numa viagem pelo ontem.
Quero olhar o ontem com os olhos de hoje cegos de brilho até os sentir lacrimejar num murmúrio silencioso.
Ir mais longe num voo trémulo de um pardalinho garamufo até aterrar na génese do meu ser.

Hoje sinto-me… como ontem.
Pesa-me nos ombros o xaile árduo de mágoas e penso em ti, em nós, no que fomos ontem e o que somos hoje, e a minha alma demente chora de saudade! O que é feito de nós? Já não suporto as ínsulas que habito, os rios de gelo que me correm nas veias, que me afogam em nostalgias perversas.
E viciosa é a indiferença que habita em nós. É uma azagaia maldita, que nos atinge a alma e nos fere gravemente tornando-nos alvo de um flagício sem testemunhas, porque apenas o som do silêncio nos grita que estamos vivos.

Hoje sinto-me… como ontem.
Mas hoje quero abeirar-me de mim para perceber porque tenho medo do mundo que me rodeia. Tenho pavor da vida, desta viagem conturbada e perigosa. E nesse percurso ensaiamos, alegria, tristeza, prazer e dor.
O tempo é tão veloz que chega a aterrorizar, e corremos como loucos com medo, que o tempo, não nos dê tempo, para vivermos o nosso tempo.

Hoje sinto-me… como ontem.
Porque ontem deitava-me no alcatrão quente da estrada da juventude até largar pedaços de pele das costas que formaram cicatrizes que me incomodam hoje.
Hoje quero sujar as mãos de terra com o mesmo regozijo que ontem a rasgava fazendo covas com as unhas de menino travesso para jogar ao berlinde.
Hoje, quero embriagar-me com o teu odor mélico, e perseguir-te tal zangão que ontem te torneava o corpo delicado de menina frangível.

Hoje sinto-me… como ontem.
Hoje sinto uma vontade louca de galgar o muro que nos separa. O muro que ontem não existia, o que me possibilitava ver os teus olhos, repletos de vida, ouvir o teu sibilante sorriso que brotava dos teus lábios com água brava de uma cascata.
Todavia o muro existe e como separa países, também separa paixões. Esse muro com o tempo foi se tornando mais pedregoso. Foi ganhando um emaranhado de rudes silvas e enegreceu com os invernos ferozes que vivemos.

Hoje sinto-me… como ontem.
O meu medo ressuscitou.
Passei a sentir a viagem no tempo como montando um comboio fantasma. Em cada curva, uma teia me esvoaça pelo rosto, em cada esquina, um espectro me assusta.
Ontem, como hoje não sou noite, nem sou dia, não sou luz, nem sombra; sou tudo e sou nada, sou todos e sou ninguém, sou terra e sou mar, sou tragédia e sou comédia, sou amor e sou ódio, sou palavra e silêncio.
Quero ser verso, mas sou prosa, quero ser razão, mas sou emoção, quero ser poeta mas sou o avesso do trovador.
Gostava de ser teu adorno e não passo de um empecilho que não te enfeita.
Sou simplesmente alguém que sonha, dorme e acorda, no intervalo da vida…

Hoje sinto-me… como ontem…
E o futuro será apenas amanhã.


domingo, 15 de agosto de 2010

Oh, se te amo…


Texto dedicado a alguém, mas com sabor a Adeus.
Amor é vida e como tal, pode ser longo, curto, rico, pobre, e tantas vezes enfermo.
Por vezes tem cura, outras, não.
Umas vezes possível, outras impossível!
Por mais que se lute o fim é a nossa única certeza...
E, tal como já o disse noutro texto,
Quem sabe, se o amor impossível é na realidade o amor verdadeiro e que por ser irrealizável é que o torna tão belo!



O negrume sensabor é agora o lugar onde me oculto, a sombra a minha companhia que ainda teima em abraçar-me e o silêncio o ombro amigo que me apoia.
Fiquei tempo demais mergulhado em mim mesmo.
Deito meu corpo em lençóis de fantasias e deixo-me ali ficar em plena e constante letargia.
Ontem, a noite foi apenas um espaço entre dois dias.
Já perdi o voar no espaço aberto da noite, já não acarreto na ponta dos dedos os caminhos dos sonhos. Perdi a liberdade de voar, deixei as convicções caírem e os sonhos dormiram e não mais despertaram.
Estou inerte, mas vivo. Até quando, não sei.
Sei que já não consigo iluminar os céus porque os meus olhos perderam o brilho. Pergunto-me onde estão os sentimentos, a essência do amor, a paixão dos instantes em que nos oferecemos?
Interrogo-me como podemos perder-nos e não mais nos encontrarmos?
Não sei onde estou, perdi a noção do espaço, do tempo, deixei o vazio vestir o meu corpo, deixei a solidão tomar de assalto a minha alma mergulhando o espírito nas águas frígidas do infinito e profundo oceano.É esta solidão que me ajuda a esquecer as juras de amor que de ti esperei.
Que estranha forma de amar?
Por vezes penso que és como uma ave presa numa gaiola imaginária, amarrada a mil teias que te mantêm presa a ninguém.
Não sei se existem milagres!
Não esperes que eu te abeire montando um asterismo de estrelas, qual príncipe encantado que te usurpa às garras do mítico drago de língua de fogo.
Não busques em mim, o paraíso perdido, qual Eva prestes a comer da maçã do pecado, procurando nela a salvação desejada.
Sou apenas uma utopia, que noite a fio passa na tela do teu desencanto, uma só melancolia, ou tão-somente um drama no próprio palco da tua vida quando deambulas pelas avenidas nuas das noites frias, de mãos dadas com ninguém, por entre a lividez da luz, silenciosos e sós.
Não sei se existem taumaturgos!
Por não o saber, irei sentar-me, numa rocha à beira do mar, e ver flutuar nas ondas as gaivotas estridentes, vidas que passam sem se deter, na corrente do dia-a-dia.
Que estranha forma de vida…
Não sei! Sei, que não tem qualquer importância os corpos que usei, os semblantes que vesti, os mundos que vivi, as noites que não dormi, as saudades que senti.
Amar com a limpidez transparente da água, sentir a maviosidade da pura seda, é mais que tudo aquilo que possa ter sido, e, se até este instante não sabia decifrar o sentir, a partir daqui não saberei mais o que é, não amar assim.
Recebi o teu abraço, senti cada fragmento da tua pele colar-se a mim, as tuas essências penetraram-me os sentidos e o meu corpo tremeu ao receber-te em mim.
Quis conhecer o aroma da tua boca, o paladar da tua pele, o toque do teu olhar em mim.
Desejei sentir a emoção do teu abraço apertado, das palavras que em silêncio falámos.
Pretendi degustar o líquido que corria em teu corpo, ecoar em ti, e contemplar o paladar do prazer transbordar como uma cascata de água límpida e vítrea.
Afinal o amor domina, e o teu coração palpita ainda no meu triste peito.
Que estranha forma de vida… Que estranha forma de amar…
E… Se te amo…
Oh, se te amo

Se não tenho

Oh, a vergonha

De o escrever

Quinta do Bill (Se Te Amo)

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Existem dias...


Existem dias que nos amarram a vida e nos debelam os sonhos. Há que ter sempre a esperança, de que a noite que se aproxima, em abafo, possa engravidar de ilusões, e parir o sonho, que abruptamente nos roubaram.

segunda-feira, 26 de julho de 2010

IDENTIDADE




Passam por mim tantos pensamentos
Que andam no espaço perdidos,
Choro dramas e tormentos
Que por mim não são vividos


Canto a vida, a alegria
De beleza no seu esplendor,
Mas sinto em mim a nostalgia
Da saudade e do amor


Perco-me num sonho impossível
Num amor inexistente
De coração ferido e sensível
Não quero viver um amor ausente


Entro nos outros, sem querer,
Leio o que sentem no fundo
E tantas vezes sem saber,
Choro em mim, a dor do mundo!


Não pedi para ser assim,
Não sei, aconteceu…
Aceito o que sou, enfim,
De outro modo não sou eu!


domingo, 18 de julho de 2010

Vem... Fala comigo




A incerteza da vida confirma-se na certeza da morte.
Todos os dias encurtamos a distância que nos separa do nosso desfecho terreno.
Mas existem dias que damos um pulo tão grande, que parecemos ter chegado à fatídica meta.
São já quatros da manha! Não consigo pregar olho, porque a morte chegou sem ser apresentada, foi apenas convidada.
Há dias em que morremos mais que outros. Em que o coração estaca, a mente estagna e a alma encrosta.
Falece a esperança, e a tristeza fica mais amarga. O assombro é de tal forma súbito que nem tempo subsiste para a extrema-unção.

Sinto a tua presença à minha volta, o teu perfume, o teu toque mágico, o teu pesaroso adeus.
Apesar de ser Julho, está uma noite fria. O vapor que expiro forma uma neblina na janela, mãos e pele arrepiadas.
Estou só, o quarto está escuro, a cama bem-feita, os lençóis imaculados e lisos.
Acendo um cigarro, sento-me na borda da cama e olho para a janela.
Já meio maço de Pall Mall estava devorado, quando dei por mim a perguntar que ruas estariam agora no teu caminho naquele momento, que pessoas novas entraram na tua vida, qual é agora a tua história.
Mas, as paredes não falam e uma janela é só uma fresta, e as ruas estão tão desertas que um cão corre de focinho no chão com medo do som do silêncio.
Saio dali para perder-me por essa senda que antes cruzávamos juntos, não sei para onde vou nem para o que vou. Simplesmente vou.
É o romper da aurora, o começo agora de um novo dia, mas eu tenho cara de noite mal dormida.
Vultos passam por mim e não me vêem, eu também não os quero ver.

O meu coração é agora um terreno baldio.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Procuro




Cai o dia nasce a noite.

Fico só… a vaguear no ilimitado labirinto do meu pensamento.

Ando a tentar aprender a não chorar por qualquer querer, por qualquer aflição entoada por uma guitarra qualquer.

Nem todas as melodias que me soam nos ouvidos são harpejos tocados nas cordas metálicas de uma genuína Stratocaster.

Ando a tentar aprender que nem tudo o que reluz é ouro, em que o lustre não passa de um reflexo adquirido.

Estou cansado de ver correr a água do rio, na fronha da minha almofada.

Estou esgotado de lutar contra moinhos de vento, que moem os grãos do sustento da minha existência, farto que me cantem rosas em dias soalheiros de esperança.

Não me ponham flores na minha alma, quando me arremessam espinhos para os olhos.

Falem-me antes da paixão das roseiras, da inocência das margaridas, do belo amor-perfeito que o é por si mesmo, da modéstia da violeta, ou do suave aroma do jasmim, enquanto o vento sacode uma oração sussurrada entre dentes, tal qual adolescente inundado de uma modesta e estonteante inocência que em tudo o que toca e olha lhe atravessa a pele ciciante.

Não falem da minha cobardia, nem das criaturas que choram a embriaguez dos seus próprios passos.

Sinto no corpo a saudade e o desejo de te amar!

E as horas vão passando, talvez rumo ao infinito. Mas estou cansado deste meu grito, da hora que não tem hora, do dia que não está escrito.

Não me rasguem nunca mais o suor da minha nudez, porque na penumbra de um olhar, somente a sombra me abraça.

Podem a partir de hoje sangrar-me a boca com trapos alagados de odores afrodisíacos de desejos contrafeitos…

Apenas e só busco a chave que possa abrir um coração que se fechou ao mundo.

Mas não me cantem rosas em dias soalheiros de uma esperança nebulosa.

terça-feira, 6 de julho de 2010

Mar submerso em lágrimas


Foi uma estocada bem no peito que acabou com tudo e me arrancou de mim.
Um despretensioso segredo que se refugia numa caixa de bonecas, assim, sem mais, sem ninguém o imaginar.
Contemplo as brechas da alma raiadas de vermelho vivo, e espelho o olhar bem no fundo de mim enquanto o sol me vai inflamando o peito.
Agora, sangra-me o adeus nas palavras e é com odor a iodo e sal que as limpo.
Que me resta? A bússola que me norteia o resto dos dias, porque sei que o meu presente jamais terá futuro.
Talvez nada mais seja importante para além da brisa ardente do mar, do apregoar dos pássaros, e do cair do dia enquanto o sol vai declinando na linha do horizonte.
Do imenso mar de emoções que me banha corpo e alma, apenas me remanesce que sempre fui filho de um adeus e agora o Diabo me fez filho de Deus.
Mas não desisto.
Procuro-te no calor do sol, tento encontrar o teu rosto no oceano, nas dunas da praia, até nas rochas que as vagas acariciam deixando-me invadir por vezes pelo silêncio apenas quebrado pela agitada e estranha pronúncia das águas do mar.
Tento ouvir o teu riso na melodia que sempre me acompanha.
Olho as crianças no jardim e imagino-te sentada naquele banco gasto pela roçar da recordação e pela solidão de um passarinho negro poisado na árvore dos meus dias com um canto cinza de embalo que parou a meu lado.
Espero pela brisa que me traga o teu cheiro a frutos bravios. Todavia, julgo que te procurei nos sítios errados. Tentei ver-te em todos os locais onde não estás.
Mas acabei por te encontrar entranhada em mim. E como numa paisagem de Rembrandt, vou pintar os meus derradeiros dias de cinzento leve, mas sempre com um pingo de vermelho rubro de paixão.
De negro as horas incertas, perdidas num pouco de azul em tom de ilusão. Depois, aqui e ali, umas manchas verdes interpoladas feitas de retoques de esperança.
E assim, lentamente e sem arte deixo escorrer o diluente na tinta de água na tela da minha vida.


terça-feira, 15 de junho de 2010

Conto de verdade






No fundo, bem lá no fundo do nosso corpo, mora uma esquiva personagem a que damos o nome de alma.
Ainda não houve quem a visse, mas todos nós sabemos que existe.
Sentimo-la!
E quando alguém nos magoa, ela agita-se. E ouve-se o seu grito de desespero.
Há quem o ouça muitas vezes. Há quem o ouça raras vezes, e há quem nunca o ouça.
Por isso vale a pena entrarmos pela noite, quando o silêncio nos rodeia, e escutar a voz muda da alma que mora dentro de nós.
No fundo, lá bem no fundo do nosso corpo.
Um texto que escrevo é quase um auto-retrato da alma que me habita. Eu sei que a comparação é exagerada mas tal como a fotografia olhada mais tarde me permite recordar coisas para além das retratadas, dos meus textos retiro depois muito mais do que deixei expresso.
Na época em que vivemos e que tudo é mensurável, pelas leis da física, ainda ninguém se atreveu a avaliar a dimensão e o peso de uma alma. Nem a chamada física quântica se pendeu para essa cata.
Foi bem mais fácil a datação do Sudário de Turim, do que a dimensão da alma.
Vem este prelúdio a propósito de uma história passada há pouco tempo e que me foi contada em primeira mão pelo protagonista.

Estava um dia cinzento, empastelado, muito mais porque a janela que o trazia tinha os vidros sujos da poeira e humidade de uma manhã de fim de Dezembro que cria uma pasta fina e texturada. Às vezes parece que se detecta um leve brilho lá fora, como se uma nuvem se espreguiçasse, esticasse e adquirisse transparência. Acho que o sol ainda não desistiu completamente de brilhar, aguarda apenas que as nuvens encontrem o seu caminho.
Gotas orvalhadas brotam de um céu infértil de estrelas, como se fossem lamentos de milhões de bocas famintas das terras áridas e desérticas clamando justiça…
Vi o Fernando no passeio oposto. Acenei-lhe com o polegar indicando-lhe que iria ter com ele.
Alguns relâmpagos e trovões irrompem no vazio da manhã, vociferadas pelos Deuses do Olimpo cansados da imbecilidade humana, dona do seu próprio destino.
O rosto é um espelho do nosso estado, mesmo quando de tal não nos apercebemos. A falta de energia instala-se nas expressões, o ânimo pesado carrega os tecidos puxando-os para o chão.
Era a imagem do meu amigo Fernando naquela manhã de Dezembro de 2009.
O odor a pão torrado convidou-nos a entrar num café. Não foi complicado escolher mesa. O estabelecimento estava vazio de gente e de sentimentos. Apenas o odor a pão nos lembrava que estávamos vivos.
Do alto da torre da igreja o relógio badala as sete horas da manhã. 
Depois do escuro da noite a cidade revela-se, as luzes modelam outras formas, outras imagens, outros sonhos.
- Quero falar-te mas não aqui… Pediu-me o Fernando após ter engolido o café fumegante.
- Onde queiras! Anui com um esboço nos lábios.
Fernando atravessou o asfalto e escolheu uma parcela do areal deixada lisa pela maré e ainda não reclamada pelas gaivotas.
O sol, que apenas despontava sobre as casas, e a humidade da madrugada, que ainda se mantinha no ar, garantiam que aquele era território virgem de gente.
Ambos nos sentámos na fina areia ainda encharcada o que me provocou um arrepio de frio. O cheiro a sal invadia-me as narinas e aturdia-me a mente.
Repentinamente, o Fernando levanta-se, pontapeia uma duna, tão característica das praias da Costa da Caparica, e começa a escavar uma enorme fossa, como que procurasse alguma coisa.
- Fernando que procuras? Perguntei eu admirado com aquela estranha postura.
- O sentido da vida!
- Não sabes onde está?
- Não!
- Onde o perdeste?
- Nunca o tive…
- Mas pelo menos sabes como é?
- Também não!
- Então, porque procuras?
- Porque me disseram que existia…
- Tu sabes como é?
- Julgo que não… mas tenho ouvido dizer que se parece com uma estrada e quando a encontramos e a seguimos apercebemo-nos que ela sempre ali esteve.
- E porque não o consigo ver eu agora?
- Porque estás demasiado ocupado na sua busca.
Exausto senta-se de novo.
O mar corre à nossa frente como o tempo. Observo-o umas centenas de metros no passado e vejo-o diluir-se no futuro no momento em que a maré vasa.
De repente fui acordado pela voz convincente de Fernando.
- Há dias em que preciso parar para me reposicionar. Sei que o devia fazer todos os dias, como um ritual, mas o ritmo acelerado da vida foi transmutando esses tempos do ser em tempos do fazer, e eu só me apercebi da mudança depois de ela instalada e sedimentada.
- Entendo-te Fernando. Todos o devíamos fazer.
- Depois, acomodei-me nas justificações de urgências e necessidades imperiosas quando não o devia ter feito.
- Pois…
- Sabes que fomos pioneiros na abolição da pena de morte?
- Sim! Claro que sabia.
- Mas, ainda não conseguimos decretar a morte das nossas penas! Porque acerca de duas semanas, estive aqui bem perto com a mulher que me faria um dia feliz.
- E?
- Aconteceu amor, aquele amor puro, inocente e conivente. Amor como aquele que vemos em algumas películas e que nos fazem soltar uma lágrima, sabes?
- Sim… Sei!
- Foi um estranho amor porque terminou rápido. Uma forma estranha de amar, porque amamos e sentimos ciúmes. Amamos e sentimos medo. Medos, de um dia ficarmos sós. Amamos como loucos, e de repente caímos no lodaçal da incerta lucidez…
- Fernando, nada está perdido…
- Vou contar-te um segredo para que o divulgues. Temos a nossa casa, feita à nossa medida, acordamos juntos na mesma cama, como sempre sonhámos. O mundo anda lá por fora, com uma indiferença atroz.
Eu agora sirvo chás ao crepúsculo junto de um rio. Sirvo infusão a amores desencontrados. 
Todos eles chegam muito fatigados e com os olhos gastos pelas lágrimas derramadas. Antes de os servir olho-os à transparência da luz que vem quando o sol se despede de nós e a lua está prestes a chegar. É o momento ideal para conhecer as pessoas.
Escolho com cuidado o chá que combina com as suas almas doentes.
O meu chá preferido é o de rosas vermelhas, mas nem sempre é o mais indicado, é muito quente e inflama os corações de paixão e por vezes eles precisam de paz, nesses casos recomendo-lhes camomila ou cidreira que são um pouco mais relaxantes.
- E que mais lhes fazes?
- Queres saber se lhes leio a sina? Sim às vezes leio, mas com o aviso de que o destino não está nas linhas que as cruzam, mas sim nas próprias mãos. Leio-as como quem brinca com um jogo antigo, forjado na cinza dos séculos. É que eu sirvo chás ao crepúsculo. Apareces por lá?
Tão veloz como a pergunta, assim se dirigiu ao mar, mergulhando a sua dor nas águas frias e revoltas da Caparica.
Alguém gritou para que não fosse ao mar. Mas, Fernando já não ouviu…
O cansaço estava patente no meu pobre rosto quando finalmente consegui chegar à praia.
Um agente da polícia pediu-me para o acompanhar, enquanto me dava uma toalha para colocar nas costas e um pouco de água para refrescar a garganta ardente da salmoura.
Subimos os degraus até um quarto com uma pequena marquise com vista para o mar, que reconheci de imediato.
No centro da cama jazia inerte, uma áurea de luz.
- O senhor é culpável pela natividade desta luz. Não vale a pena negar. A peritagem não deixa margem para dúvidas.
- Mas eu estive neste local, faz seis meses…
- Pode fornecer-me o paradeiro da “mãe”?
- Não… não posso saber… afastou-se…
- Esta áurea tem mais de dois anos, e abandonada vai para seis meses. Não está morta porque é a génese do amor.
- Irá ser transportada para o “Hospital da Estrela” e talvez ainda possa sobreviver…


O despertador toca, libertando o som do silêncio que se encolhe no escuro. Ruidosamente, interrompe o áureo sonho e esfrega na cara mais uma manhã que nasce.
Levo algum tempo a colar-me à realidade. Mais um dia de tédio. Mais uma data de inexistência.
Ignoro o insistente despertador - o anjo de guarda - que continua a apitar de oito em oito minutos relembrando-me a que a natureza pariu mais um dia. Refugia-me em dupla escuridão, debaixo do edredão.
Gasto o tempo, os minutos, os segundos. Até não poder mais.
Tinha de me levantar. Puxei a roupa da cama e bem no meio, pareceu-me ver uma áurea de luz inerte à espera de mim e de ti.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Diamante louco



Hoje sinto-me um diamante louco que emana brilho por todos os poros do meu corpo.



Falso!



Sinto-me triste por não passar apenas de uma ametista lapidada pelo ângulo obtuso da vida.

sábado, 29 de maio de 2010

Em pólos opostos provoquei o tumulto da escrita e o paradoxo da razão...




Quero olhar o sol azul, para dar algum recorte à sombra do ramo da árvore que me serve de abrigo e uma chama à filigrana dos meus sonhos, algo frios e nus.
Sei que existe um sol azul a meio caminho da angústia tomando a rota do sonho.
Mas, os teus raios andam distante como eu. Ambos escondidos atrás das nuvens do nosso desapontamento.

≈≈≈

Eu sei que sou um solitário.

Escrevo, ouço música, faço música, e medito na melodia da noite.

Gosto de viajar no seio das suas sombras, nos recantos dos seus túneis, e nela vou indo.

Canto hinos ao amor, enquanto o EU, caminha sozinho.

Sim, sou um solitário que companhia procura.

Afago as cordas com gestos perfeitos e beijos de loucura.

Com paz travei guerras, apaziguei um coração

Levantei poeira, destapei feridas escondidas

Esperei a chegada de nuvens grossas,

Como rolos de algodão negro que abafaram toda a respiração.

Tudo isto não é por gosto

Mas sim estar num pólo oposto

No entanto existes

Aí no limite do meu sonho

Onde os gritos do silêncio ecoam.

≈≈≈

Se o grito saísse, se o som alcançasse o longe mais longe, e se a voz me ajudasse a lançar o eco da minha alma, talvez, se soltassem os nós que me atam o peito que arde de paixão, talvez se rasgasse o véu que me tapa os olhos doridos das lágrimas soltas, talvez hoje visse a vida a cores, no ecrã cinzento do meu olhar.
Quero romper as amarras do meu coração. Quero sentir o vento e entregar-me à doçura da brisa, encher meu peito ardente e vazio, libertar o pensamento e meditar ainda em amar.
Quero buscar o amor em cada gesto que faça, em cada sorriso, em cada palavra, em cada olhar. E quem sabe, se um dia irá voltar?
Mas estamos em pólos opostos!

≈≈≈

Todavia, a tentação espreita sedutora à janela dos meus dias.
E o mar revolto chama-me. Vou! Quero abraçá-lo, sentir as águas frias e agitadas que me regam o corpo. Experimentar o sabor a sal que me queima as entranhas.
Finalmente abraço-o e sussurro-lhe que irei amá-lo para sempre.
Mas, não posso, não quero, não devo voltar a amar do mesmo modo.
Fujo e recuso o enlace, o desfecho fatal.
Certamente que tem de haver um mar capaz de adoçar o meu amargo dia, amansar este peito repleto de nostalgia, ouvir o meu pranto silencioso.
Urge encontrá-lo.

Mas estamos em pólos opostos!



Nota: Este texto evoca quatro fases da minha vida.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

A extrema carta


Lembrar é fácil pra quem tem memória, esquecer é difícil pra que tem coração.

(Jonathas Hardy)


Vou-te contar um dia, se para isso tiver audácia e sobretudo oportunidade. Pode não ser neste mundo, mas vou-te contar. Prometo!
Hoje não, porque hoje vou trocar o certo pelo incerto, as promessas por desejos, a emoção pela razão.
Hoje, não quero que o meu pensamento navegue no subterrâneo escuro e pantanoso do abalo.
Não quero ser apenas a miragem de um amor distraído que tropeçou no silêncio da perfeição.
Devia ter dito as palavras todas, como tu, mas sem lhes medir o sabor na língua antes de as morder em raiva.
O amor, tão nobre sentimento, tão grande tesouro, tão grande segredo que nos aperta a garganta, que nos faz sonhar com melhores tempos, com factos que sabemos que não irão acontecer...
Que enorme arma se entrega na mão de quem amamos. De tal forma tão arrojada, que para a disparar basta apenas uma simples palavra, e tão rápido como a luz, somos feridos e ficamos magoados com a pureza e a sensibilidade de uma criança de colo.
Nesta vida, já não espero milagres ou grandes novidades, mas desejava uma vez na vida, poder dizer: "Hoje realizei um sonho..."
E que sonhos são esses? Nada de especial... Apenas um passeio ao lado de quem amo, ouvir o meu nome pronunciado pelos lábios que tanto sonhei... simples não é?
Não, não é simples, é tão complexo como tudo na vida, quem sabe até mais.
Hoje deixo escorregar palavras pequenas e soltas que deixo aqui, sabendo que não serão lidas por ninguém a não ser eu... como tem ocorrido nestes últimos tempos sem qualquer motivo. O único que me ocorre, é que já ninguém têm paciência, para ler e comentar, um sonhador que já não sabe sonhar.
Hoje, só hoje, o teu sorriso é uma carícia fugaz, e a minha vida, uma falsidade em que eu quero acreditar.
Mesmo hoje continuo a ter saudades do nosso tempo, dos nossos momentos, da troca conivente de olhares, dos beijos cegos e húmidos de prazer sem limites, de ti...
Sei bem que se voltássemos a tentar reconstruir o que perdemos que nada voltaria a ser igual.
Irei seguir a minha jornada apesar de continuares esculpida na minha cabeça, talhada no meu coração.
Não sei explicar o temível enigma que nos molesta. Nem vislumbro solução quando repouso os meus olhos no infinito do mar.
Não tenho resposta para o incessante baloiçar de palavras ferozes, no parque do jardim dos nossos corações.
Não quero ser um obstáculo, uma escura ardósia que te tapa a felicidade.
Não pretendo ser o vulcão irado que cospe cinza que te envolve e te inibe de voar.
Para isso tenho de evaporar como uma poça de água estagnada ao sol quente e agreste.
Mas, antes de desaparecer de ti, de mim... Senta-te aqui. Encosta-te a mim e fala-me de ti!
Agora as palavras não faladas enchem-me os ouvidos, e eu calo-as num cântico bem alto, para lhes espantar o poder maléfico e as lágrimas entristecidas.

Deus queira que hoje a voz não me falhe!

25-05-2010


segunda-feira, 24 de maio de 2010

Beto


O cantor português Beto morreu, este domingo, em Torres Vedras, vítima de acidente vascular cerebral. Contava 43 anos.
Natural de Peniche, Beto era habitual presença em programas televisivos, sendo muito reconhecido pelos duetos protagonizados com Rita Guerra.
Antes, destacou-se a actuar no bar Xafarix, em Lisboa, liderando os Tanimaria. Em 1998 representou Portugal no Festival da OTI, na Costa Rica, alcançado a terceira posição final com o tema «Quem Espera (Desespera)».
O primeiro álbum a solo só foi editado em 2003, sob o título «Olhar em Frente», que chegou a ser disco de platina, tal como aconteceu com o seu sucessor «Influências», em 2005. Lançou ainda mais dois álbuns e no ano passado saiu no mercado «O Melhor de Beto»
 
A Bola
 
 
Nunca fui particularmente apreciador da sua música, no entando quero homenager mais um homem jovem que nos deixa  vitima do terrível AVC.

Mesmo não sendo um apreciador, hoje, esta canção diz-me muito...

E nestes momentos a mente nebuliza e vejo a minha vida percorrer-me velozmente como se de uma película de um filme se tratasse e penso:

Para quê tanta hipocrisia?

Para quê tanta inveja?

Para que serve tanta competição?

Para que serve tanta disputa?

Para que nos serve tentar “pisar” os outros?

Para que se apregoa tanto amor, se tudo não passa de uma gigantesca farsa?

E no meio disto tudo onde fica a amizade?

E nós?

Não somos mesmo nada.

Infelizmente sei bem o que significa...

Descansa em paz

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Do Infinito



"O pensamento é a presença do infinito na mente humana."



Emilio Castelar



Ao desfolhar a Colectânea Do Infinito, ao contemplar as várias formas estéticas, a heterogeneidade de ideias, a diversidade de estilos, idades, fechei os olhos por um instante e, ao mesmo tempo que pensei na fortuna de ter sido seleccionado, imaginei que me ia afastando de mim próprio até ao infinito.
Mas será que podemos ir além dos limites da nossa imaginação?
E qual o limite da nossa imaginação?
Ao ler esta colectânea, fiquei com a certeza de que a imaginação não tem términos e é como um universo, em expansão permanente.
Na realidade descobri que ao virar de cada página, era como aflorar uma nova estrela.
E vaguei por tantas que não as contei. Mas, de que me adianta saber quantas estrelas existem no céu se não me conheço a mim mesmo, se não sei quantos sonhos existem na minha alma!
É justamente na raia do real e do imaginário, do finito e do infinito que me encontro. Vejo-me imerso num colapso da razão onde não posso definir o certo do errado.
E nesta imensidão do pensamento, não passo de um sonho do tamanho de um grão de areia.
Poesia, conto, conto poético, ou versos em prosa, de tudo esta colectânea possui.
No seu íntimo encerra 22 autores que viajaram num sonho infinito através da palavra.
Á Minerva e ao Ângelo Rodrigues, um obrigado especial por terem proporcionado o trilho certo para esta aventura sem limites.
A si, que me lê quero apenas dizer, que este livro não se encontra à venda e que apenas pode ser adquirido aos autores, dado ser uma edição limitada.
A todos os restantes participantes, o meu agradecimento.

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Tristão, Romeu ou Pierrot?



Enquanto os quilómetros vão passando pela paisagem, olho o horizonte limpo na manhã por estrear. Uma mescla de cores em azul e rosa alaranjado dizem que em breve o sol vai aparecer.
Paira um silêncio branco, belo, um mutismo puro pendurado nas copas das árvores recortadas como num quadro em tons pastel.
Sigo viagem para o meu destino, incógnito.
As minhas horas formam uma cadeia quase sem surpresas, repleta de actos, de obrigações, de alegrias e tristezas de uma existência trivial.
O enfado de uma vida… uma jornada sem destino.
A mística manhã provoca-me sempre um transe de tal forma que deixo a pele do meu corpo no assento da serpente metálica, e o restante levita numa viagem que nunca sei se terá regressão.
Amor, porque não me colocas uma máscara? Pode ser a que tu quiseres que eu traje. Enlaça o teu braço no meu e conduz-me ao salão de dança, porque hoje é dia de viver a fantasia.
Diz que é o fim, e logo a máscara terá que cair. Sempre que te olho, vivo a fantasia, a realidade sonhada dos meus dias.
Permite-me ser, o botão da tua blusa aberto pela mão que ousa fazer engrandecer as pétalas da direcção do teu despir.
Percorro os meus medos em espiral num poço sem luz, como se reconhecê-los fosse meio caminho andado para os enfrentar. Lá, bem no fundo desse poço, existe um corredor comprido de paredes amareladas e portas, muitas portas de um lado e doutro. Encostados à parede, bancos onde se sentam apenas olhares. Pressinto súplica, desespero, esperança. E dor.
Quase palpável é a acusação daqueles olhos que seguem os meus movimentos.
Passo por esses olhares, com vergonha e culpa. Sem encontrar também eu a explicação.
Ali, no corredor escondido no fundo dos meus medos, enfrento as minhas orgulhosas certezas, as minhas arrogâncias, e sinto que não valem nada.
Aqueles olhares também já reflectiram certezas, vaidades, arrogâncias. Também já brilharam de esperança, de amor.
Uns olhos, diferentes atiçaram-me a atenção. Com o medo a escorrega-me na face encostei-me à parede do corredor das minhas ilusões.
Aqueles olhos falavam. Inerte e prisioneiro de um simples olhar, ali permaneci num absorto silêncio.
Como aqueles olhos eram diferentes. E como se faziam ouvir no íntimo e completo mutismo da minha mente.
Da bandeja daqueles olhos caiu o copo, que derramou o tempero em meu corpo. O condimento para me despertar a sede de amar. Atira-me esses olhos e desfaz em mim o sal do teu olhar. Troca as cinzas que me habitam, pela almejada timidez do teu verde de sabor ao sal do mar encrespado.
A tua canícula de paixão e o sal ardente e inquieto do teu mar queimaram-me de sede!
Mas, se eu já não sou, e tu já não és, que sobra desses olhos franzidos que me olham como se eu fosse um nume sem poderes.
Eu nem existo mais! Apenas me resta a recordação da tua frescura, o sabor do teu suor, as grilhetas do nosso toque e o tremor do teu corpo.
Atira-me de novo os teus olhos contra os meus, faz-me daltónico dessa sede e diz-me quem sou.
Um Arlequim à busca da sua Columbina? Um príncipe escantado tentando encontrar a princesa adormecida? Ou o arquétipo de qualquer romance como Tristão e Isolda ou Romeu e Julieta?
Não!

Serei para sempre, apenas um simples, triste e sonhador “pierrot”, que vagueia numa encenação improvisada de uma Commedia dell’arte, deixando-se levar ao sabor da inspiração do momento.

sábado, 8 de maio de 2010

De que cor são as papoilas?


“A última das ilusões é crer que as perdemos todas”

Maurice Chapelan


Passo mesmo alheado do mundo restante, da luz e da sombra, do branco e do negro, do ódio e do amor, do sol e da lua, do orgulho e do preconceito, da natividade e da extinção.
Acordo, percorro a manhã, desde o descolar dos olhos até ao sentimento de realmente acordar que vem com os rituais do primeiro café. Até lá, só o prazer de sentir a água a percorrer-me o corpo, que me fazem soltar da pele e do espírito todos os pecados dos sonhos da noite.
Com movimentos bem decorados, solto o cigarro dos dedos e salto para o comboio. Acomodo-me num banco junto da janela e começo a sentir palavras a esvoaçar por todo o lado.
Algumas param por segundos na minha mente ainda entorpecida.
Palavras que não se fixam, impressões de um momento que, no momento seguinte, fugiram. Depois são palavras da monotonia do ritual monocórdico do dia. É no final do dia, que acordo todas as interrogações, que dos dedos saem palavras que precisam ser escritas, frases vindas de improváveis recordações, uma espécie de carga em bruto que luta para tomar forma.
Espero por elas, de mãos cruzadas sobre o colo da utopia.
Hoje irei percorrer alguns caminhos de terra batida, ou seja vou andar por aí, deixar a caneta borrar a folha branca sem preocupação de a engravidar mesmo sabendo os riscos serão imensos. Riscos calculados e de um vítreo azul.
Largo a estrada lisa, torneada, de traços bem delineados sem qualquer preocupação da forma erudita da escrita.
Hoje… Acordei assim. Estou-me nas tintas para tudo o que me põem à frente como sendo uma triste realidade.
Pessoas “amigas de verdade” deixaram de me falar, sem razão para o fazerem. Porque se essa razão existe, digam-ma.
Que me importa! Fiquem com Deus.
A economia está péssima e estamos na cauda da Europa, quero lá saber! A Grécia está bem pior.
Morremos que nem tordos sempre que existe um fim-de-semana prolongado? É chato, mas que posso eu fazer? Nada!
A corrupção alastra e parece que os tribunais têm tendência a fazer vista grossa. E daí? Existem por ai oftalmologistas suficientes.
Que os reformados vivem na miséria… Concordo, e os outros?
Por falar em reforma, estou a ver que, quando me reformar, vou ter para aí metade do ónus que esperava, mas que seja tudo por uma boa causa.
Isto se me deixarem reformar e não decidirem que terei que trabalhar até morrer. Afinal porque não?
Já viram, hoje estou-me mesmo nas tintas. Enfim, vêm aí meses exaltantes, vamos lá todos abanar o capacete para o Rock in Rio Tejo e alguém tem dúvidas de que a selecção vai fazer um excelente Mundial?
Que me deixem de comentar o meu blog, como tem acontecido? Que importa? Comenta quem quiser e gostar…
Na realidade não quero pensar nisso!
Quero apenas ser superficial… vulgar e apenas e só pensar em nada.
E digam-me, de que cores são as papoilas? Vermelhas? Encarnadas? Respostas prosaicas… As papoilas são cor do sangue que me corre nas veias. Bom, esta já é uma resposta poética. Mas que diferença faz? Nenhuma. É apenas e só uma designação. Tal como a dor, a sensibilidade, o ser, o sentir.
Façamos um enorme silêncio sobre a vida real, deixemos as palavras dizer do mundo inventado onde, ao de leve, só ao de leve, pairam os nossos sentimentos.
Recorramos a todas as figuras de estilo. Sublimemos. Será para isto que servem as palavras? Não para mim, não hoje, sobretudo.
Mas nem sei como vim parar aqui a esta reflexão, porque hoje eu só queria saber de que cores são realmente as papoilas. Aquelas papoilas que existem nos campos e se sentem nas mãos quando as colhemos.
Tudo se dilui rapidamente na consciência dos sentidos feridos pela agressão dos sons e cores da rotina matinal.
Corremos que nem loucos. Vivemos tentando vencer a corrida do tempo. Não temos espaço para pensar, para olhar, para sorrir, nem para amar.
Passava por ali todos os dias. Sempre a pressa, sempre desejoso de chegar aos muitos destinos dos compromissos do dia.
Envolvido em tantas preocupações, não podia parar para pensar, muito menos para olhar a vida à minha volta.
Nunca tinha dado por aquela rua, nem por aquela casa. Sabia vagamente que aquele era o meu caminho habitual, quase aprendido de cor.
Uma sensação de estranheza invadiu-me. Questionei-me se não me teria enganado. Ninguém por perto.
A rua estava deserta e a casa parecia desabitada, em ruínas. Naquela zona? Senti uma sensação estranha que me obrigou a parar. Sem saber porquê, pressenti que o normal fluxo da minha vida tinha sido interrompido. A minha vida… a mulher cansada de esperanças frustradas, o filho cresceu sem eu dar por isso. Afectos, alguns, em que nunca me empenhei em demasia. Mas porque estaria a pensar tudo isto? Porque não conseguia eu desviar o olhar da casa em ruínas? Não sabia, não me sentia sequer. A casa convocava-me. Estranhamente, entendi que não valia a pena preocupar-me com o atraso. Julgo que tenho andado atrasado em toda a minha vida. Avancei e bati fortemente com a mão na madeira que me chamava.
Então, escutei uma voz que orava em surdina… “não olhes, vê, contempla, mesmo que te ardam os olhos. Não toques, sente, mesmo que não sintas o corpo. Não fales, diz, mesmo que a alma pingue sangue… e quero dizer-te um segredo que guardo nas dobras da alma, se soubesse as coordenadas certas do teu rasto, a pista correcta para a ti chegar… Queria trazer-te para mim…”
Com passos indecisos quis caminhar na margem do nevoeiro, na neblina da manhã, mas com receio no mundo dos sonhos.
Penso na minha vida que se dispersa como a bruma com o crescer do dia.
Que atalho tomar?
Assim, fico inerte no seio da manhã, esperando pelo sol na esperança que me mostre o caminho.
Que caminho?
Eu simplesmente queria saber a cor das papoilas.