“A última das ilusões é crer que as perdemos todas”
Maurice Chapelan
Passo mesmo alheado do mundo restante, da luz e da sombra, do branco e do negro, do ódio e do amor, do sol e da lua, do orgulho e do preconceito, da natividade e da extinção.
Acordo, percorro a manhã, desde o descolar dos olhos até ao sentimento de realmente acordar que vem com os rituais do primeiro café. Até lá, só o prazer de sentir a água a percorrer-me o corpo, que me fazem soltar da pele e do espírito todos os pecados dos sonhos da noite.
Com movimentos bem decorados, solto o cigarro dos dedos e salto para o comboio. Acomodo-me num banco junto da janela e começo a sentir palavras a esvoaçar por todo o lado.
Algumas param por segundos na minha mente ainda entorpecida.
Palavras que não se fixam, impressões de um momento que, no momento seguinte, fugiram. Depois são palavras da monotonia do ritual monocórdico do dia. É no final do dia, que acordo todas as interrogações, que dos dedos saem palavras que precisam ser escritas, frases vindas de improváveis recordações, uma espécie de carga em bruto que luta para tomar forma.
Espero por elas, de mãos cruzadas sobre o colo da utopia.
Hoje irei percorrer alguns caminhos de terra batida, ou seja vou andar por aí, deixar a caneta borrar a folha branca sem preocupação de a engravidar mesmo sabendo os riscos serão imensos. Riscos calculados e de um vítreo azul.
Largo a estrada lisa, torneada, de traços bem delineados sem qualquer preocupação da forma erudita da escrita.
Hoje… Acordei assim. Estou-me nas tintas para tudo o que me põem à frente como sendo uma triste realidade.
Pessoas “amigas de verdade” deixaram de me falar, sem razão para o fazerem. Porque se essa razão existe, digam-ma.
Que me importa! Fiquem com Deus.
A economia está péssima e estamos na cauda da Europa, quero lá saber! A Grécia está bem pior.
Morremos que nem tordos sempre que existe um fim-de-semana prolongado? É chato, mas que posso eu fazer? Nada!
A corrupção alastra e parece que os tribunais têm tendência a fazer vista grossa. E daí? Existem por ai oftalmologistas suficientes.
Que os reformados vivem na miséria… Concordo, e os outros?
Por falar em reforma, estou a ver que, quando me reformar, vou ter para aí metade do ónus que esperava, mas que seja tudo por uma boa causa.
Isto se me deixarem reformar e não decidirem que terei que trabalhar até morrer. Afinal porque não?
Já viram, hoje estou-me mesmo nas tintas. Enfim, vêm aí meses exaltantes, vamos lá todos abanar o capacete para o Rock in Rio Tejo e alguém tem dúvidas de que a selecção vai fazer um excelente Mundial?
Que me deixem de comentar o meu blog, como tem acontecido? Que importa? Comenta quem quiser e gostar…
Na realidade não quero pensar nisso!
Quero apenas ser superficial… vulgar e apenas e só pensar em nada.
E digam-me, de que cores são as papoilas? Vermelhas? Encarnadas? Respostas prosaicas… As papoilas são cor do sangue que me corre nas veias. Bom, esta já é uma resposta poética. Mas que diferença faz? Nenhuma. É apenas e só uma designação. Tal como a dor, a sensibilidade, o ser, o sentir.
Façamos um enorme silêncio sobre a vida real, deixemos as palavras dizer do mundo inventado onde, ao de leve, só ao de leve, pairam os nossos sentimentos.
Recorramos a todas as figuras de estilo. Sublimemos. Será para isto que servem as palavras? Não para mim, não hoje, sobretudo.
Mas nem sei como vim parar aqui a esta reflexão, porque hoje eu só queria saber de que cores são realmente as papoilas. Aquelas papoilas que existem nos campos e se sentem nas mãos quando as colhemos.
Tudo se dilui rapidamente na consciência dos sentidos feridos pela agressão dos sons e cores da rotina matinal.
Corremos que nem loucos. Vivemos tentando vencer a corrida do tempo. Não temos espaço para pensar, para olhar, para sorrir, nem para amar.
Passava por ali todos os dias. Sempre a pressa, sempre desejoso de chegar aos muitos destinos dos compromissos do dia.
Envolvido em tantas preocupações, não podia parar para pensar, muito menos para olhar a vida à minha volta.
Nunca tinha dado por aquela rua, nem por aquela casa. Sabia vagamente que aquele era o meu caminho habitual, quase aprendido de cor.
Uma sensação de estranheza invadiu-me. Questionei-me se não me teria enganado. Ninguém por perto.
A rua estava deserta e a casa parecia desabitada, em ruínas. Naquela zona? Senti uma sensação estranha que me obrigou a parar. Sem saber porquê, pressenti que o normal fluxo da minha vida tinha sido interrompido. A minha vida… a mulher cansada de esperanças frustradas, o filho cresceu sem eu dar por isso. Afectos, alguns, em que nunca me empenhei em demasia. Mas porque estaria a pensar tudo isto? Porque não conseguia eu desviar o olhar da casa em ruínas? Não sabia, não me sentia sequer. A casa convocava-me. Estranhamente, entendi que não valia a pena preocupar-me com o atraso. Julgo que tenho andado atrasado em toda a minha vida. Avancei e bati fortemente com a mão na madeira que me chamava.
Então, escutei uma voz que orava em surdina… “não olhes, vê, contempla, mesmo que te ardam os olhos. Não toques, sente, mesmo que não sintas o corpo. Não fales, diz, mesmo que a alma pingue sangue… e quero dizer-te um segredo que guardo nas dobras da alma, se soubesse as coordenadas certas do teu rasto, a pista correcta para a ti chegar… Queria trazer-te para mim…”
Com passos indecisos quis caminhar na margem do nevoeiro, na neblina da manhã, mas com receio no mundo dos sonhos.
Penso na minha vida que se dispersa como a bruma com o crescer do dia.
Que atalho tomar?
Assim, fico inerte no seio da manhã, esperando pelo sol na esperança que me mostre o caminho.
Que caminho?
Eu simplesmente queria saber a cor das papoilas.