Adoro Lisboa. Não sei se é a paisagem pitoresca, as figuras ambulantes que a percorrem, a contradição entre prédios a cair por falta de conservação, rodeados por edificações de linhas planas e hodiernas, ou se os pombos que conspurcam por toda a cidade as estátuas dos ilustres perecidos dando um aspecto esverdeado às mesmas, ou se as rocambolescas peripécias vividas neste grande palco, mas fascina-me.
Quando conheci a Dora numa discoteca, escura e apinhada de gente arranjada e bem vestida, não imaginei vê-la agora assim. Ela era gira. De noite era mais e quando a vi de dia pensei que nem tudo o que parece é.
Dora era afeada e por essa razão, ao fim de alguns meses de prazer, o contentamento diminuiu e os nossos encontros escasseavam no seu ninho para onde tinha levado alguma farpela e um pedaço da minha alma, por súplica dela.
Como num pesadelo disfarçado ou como naquela música conhecida dos Supertramp, nunca se levantava a tempo do pequeno-almoço e tinha que ir embora mais cedo que as aves migratórias.
Deixava no ar o perfume da aventura noctívaga e aquele último olhar vincado a lápis e rímel rasca que se pega e não nos quer largar por muitos anos que se possam viver. Num simples gesto atirava com a andrinopla para o chão, um breve “vou”, e num ápice a porta aferrolhava com um estrondo que fazia tremer o chão desbastado pelos anos e pelos passos cadenciados certamente pelas almas que o tinham já habitado.
Era um apartamento acanhado, mas bem decorado embora na verdade não tivesse grande vizinhança.
Todavia de que nos servia isso, da janela via-se o entulho das obras, não sei onde havia tantas obras para haver tanto lixo, às vezes o pó entrava-nos pela fresta da cozinha que tínhamos de ter fechada e passávamos assim dias sem ar de respirar, só ar de gente, ar já gasto, se o ar era gasto não sei, mas sei, que não era bom.
Mas como alguém me diz sempre, “Um dia a seguir ao outro”. E eu assim faço!
***
Nesse prédio envelhecido de dois andares prostrado na estrada de Benfica onde emparelhei meia dúzia de meses, conheci um jovem de comportamento pouco ortodoxo.
Habitava o segundo direito, ou melhor via-me a mim de forma superior, pois Dora partilhava o primeiro direito com o Renato, um colega de faculdade. Eu, era apenas um intruso com direito a catre, quando ela por compaixão não se enrolava com o Renato, ou resolvia passar a noite na discoteca e regressar de táxi a altas horas da noite, com um cheiro insuportável a etílico martelado.
O jovem, que mais tarde vim a saber ter sido baptizado com o nome de Alberto, era simplesmente conhecido por Pencas, devido à peculiar preguiça portuguesa e à presença ornamental de um apêndice respiratório um pouco anormal que ostentava na frente do rosto avermelhado.
O Pencas dormia de manhã, acordava ao fim da tarde e vivia durante a noite. Para além de ser noctívago, também tinha um penteado esquisito, uma marrafa que fazia lembrar um Sioux. O rapaz era único, enfarpelado em mistério e segredos, e ninguém sabia o que fazia. Desconfiavam mesmo que nem sequer tinha cartão do cidadão, como se designa actualmente.
O segundo andar do prédio de Benfica onde o Pencas se refugiava era um gaiola apertada onde se amontoavam um canapé, livros ornamentados com pó, algumas fotos antigas e imensos discos de vinil. Naquela fabulosa colecção de discos estavam incluídos todos os negros americanos que fizeram a história da música do século vinte. Os discos foram herdados de um avô, um velho poeta que, numa noite bêbada, teve morte trágica.
O Pencas passava dias inteiros fechado em casa e horas a sentir toda a música do mundo, que para ele terminava no início dos anos sessenta. Para ele, o Maio de 1968 não tinha acontecido. Vivia solitário e isolado da vida actual de Lisboa. Enclausurado no cubículo, não conhecia ninguém. Era uma Carmelita que dedicava a vida à crença da música da poesia e de alguns romances, essencialmente os clássicos.
As estações do ano passavam por ele sem que se apercebesse. Quando chovia, o Pencas alheava-se da meteorologia em casa. Observava através dos vidros molhados e estreitos da janela, as ruas vazias. Depois, enroscava-se no sofá, a folhear um livro ao acaso e a comer pêra enlatada com a data de validade ultrapassada.
Quando conheci a Dora numa discoteca, escura e apinhada de gente arranjada e bem vestida, não imaginei vê-la agora assim. Ela era gira. De noite era mais e quando a vi de dia pensei que nem tudo o que parece é.
Dora era afeada e por essa razão, ao fim de alguns meses de prazer, o contentamento diminuiu e os nossos encontros escasseavam no seu ninho para onde tinha levado alguma farpela e um pedaço da minha alma, por súplica dela.
Como num pesadelo disfarçado ou como naquela música conhecida dos Supertramp, nunca se levantava a tempo do pequeno-almoço e tinha que ir embora mais cedo que as aves migratórias.
Deixava no ar o perfume da aventura noctívaga e aquele último olhar vincado a lápis e rímel rasca que se pega e não nos quer largar por muitos anos que se possam viver. Num simples gesto atirava com a andrinopla para o chão, um breve “vou”, e num ápice a porta aferrolhava com um estrondo que fazia tremer o chão desbastado pelos anos e pelos passos cadenciados certamente pelas almas que o tinham já habitado.
Era um apartamento acanhado, mas bem decorado embora na verdade não tivesse grande vizinhança.
Todavia de que nos servia isso, da janela via-se o entulho das obras, não sei onde havia tantas obras para haver tanto lixo, às vezes o pó entrava-nos pela fresta da cozinha que tínhamos de ter fechada e passávamos assim dias sem ar de respirar, só ar de gente, ar já gasto, se o ar era gasto não sei, mas sei, que não era bom.
Mas como alguém me diz sempre, “Um dia a seguir ao outro”. E eu assim faço!
***
Nesse prédio envelhecido de dois andares prostrado na estrada de Benfica onde emparelhei meia dúzia de meses, conheci um jovem de comportamento pouco ortodoxo.
Habitava o segundo direito, ou melhor via-me a mim de forma superior, pois Dora partilhava o primeiro direito com o Renato, um colega de faculdade. Eu, era apenas um intruso com direito a catre, quando ela por compaixão não se enrolava com o Renato, ou resolvia passar a noite na discoteca e regressar de táxi a altas horas da noite, com um cheiro insuportável a etílico martelado.
O jovem, que mais tarde vim a saber ter sido baptizado com o nome de Alberto, era simplesmente conhecido por Pencas, devido à peculiar preguiça portuguesa e à presença ornamental de um apêndice respiratório um pouco anormal que ostentava na frente do rosto avermelhado.
O Pencas dormia de manhã, acordava ao fim da tarde e vivia durante a noite. Para além de ser noctívago, também tinha um penteado esquisito, uma marrafa que fazia lembrar um Sioux. O rapaz era único, enfarpelado em mistério e segredos, e ninguém sabia o que fazia. Desconfiavam mesmo que nem sequer tinha cartão do cidadão, como se designa actualmente.
O segundo andar do prédio de Benfica onde o Pencas se refugiava era um gaiola apertada onde se amontoavam um canapé, livros ornamentados com pó, algumas fotos antigas e imensos discos de vinil. Naquela fabulosa colecção de discos estavam incluídos todos os negros americanos que fizeram a história da música do século vinte. Os discos foram herdados de um avô, um velho poeta que, numa noite bêbada, teve morte trágica.
O Pencas passava dias inteiros fechado em casa e horas a sentir toda a música do mundo, que para ele terminava no início dos anos sessenta. Para ele, o Maio de 1968 não tinha acontecido. Vivia solitário e isolado da vida actual de Lisboa. Enclausurado no cubículo, não conhecia ninguém. Era uma Carmelita que dedicava a vida à crença da música da poesia e de alguns romances, essencialmente os clássicos.
As estações do ano passavam por ele sem que se apercebesse. Quando chovia, o Pencas alheava-se da meteorologia em casa. Observava através dos vidros molhados e estreitos da janela, as ruas vazias. Depois, enroscava-se no sofá, a folhear um livro ao acaso e a comer pêra enlatada com a data de validade ultrapassada.
(continua)
Fotografia: António Feliciano
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