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segunda-feira, 7 de setembro de 2009

O sono da mentira

Não falamos, nem sorrimos. Os olhos sentem vergonha de nós e por essa razão evitam-se.
O meu sono teima em chegar, o teu abraça-te e leva-te para um mundo de mistério e luz.
A tua boca entreaberta em finos sopros de hálito quente tolhe-me o pensamento e o sossego.
Os anos galoparam como um cavalo de corrida. A distância da meta era diferente para cada um de nós e, quando se corre sem o mesmo objectivo, o percurso é sinuoso, torturante e o triunfo quase sempre intangível.
E depois do apogeu, sempre chega o declínio, e não tardou muito até que o nosso idílio de amor se revelasse como uma tragédia de Shakespeare.
E como “ser ou não ser, eis a questão:”, lembro com nostalgia a nossa epopeia. Uma trajectória algo atribulada e nem sempre pacífica.
Eras uma pequena rebelde, extravagante e imprevisível. Mas na mesma dose de bravura que te caracterizava, possuías ao mesmo tempo uma serenidade estranha, que me cativou.
O teu corpo era tão feito de sol que aquecia meus poros cristalizados de lua... e, eu via a lua através do teu corpo, e a noite lunar que te aflorava o rosto.
Passaste a dormir no início do meu segredo. Dormias por ti e por mim.
Eu continuava mudo de voz e de sentimentos. Respirava as horas suspensas no ar e aspirava música rock debitada por um rádio a pilhas enquanto recostava no corpo da noite que me fazia companhia.
Já alterei algumas coisas na minha forma de estar, mas não me peçam mais daquilo que posso dar.
Não prometo o que não sei se posso cumprir. Tento, luto por, mas não invento nem crio falsas expectativas.
Por essa razão idealizei fantasias, ilusões. Nada, tudo sem qualquer resultado.
Em surdina começo a ouvir vozes que me fizeram acreditar em algumas coisas na vida, que me deram conselhos, mas também houve outras que me derrubaram, fizeram-me cair, sentir-me num precipício. As vozes passam a ecoar cada vez mais alto. Estão dentro da minha cabeça, parecem querer estoirar-me os miolos.
Desamparadamente deixo-me cair. Teria alguma vez sido amado?
Será que conheço o verdadeiro significado do amor? Na realidade, não sei se sei.
Sei sim que me sinto fraco. Desgastado por meio século de existência e muitos anos de marasmo.
Por vezes quero sorrir, mas a tristeza está vincada na expressão dos meus olhos. Já não logro ninguém. Cada vez mais, acredito no que diz o poeta La Rochefoucauld, quando diz que “O verdadeiro amor é como a aparição dos espíritos: toda a gente fala dele, mas poucos o viram.”
·
Uma noite de insónia e tracei no papel da memória o percurso da minha sombra.
Não se ela também deixou de me seguir.
Eu numa apatia aterradora diária deixo-me enterrar no sofá de sempre, acende o cigarro da angústia, levo-o serenamente aos lábios, e inundo os pulmões de alcatrão, para que o negro possa cobrir igualmente a minha alma que acredito estar dentro do peito.
As malas meio feitas, os olhos postos num horizonte que também já não existe. A hesitação. Ainda, e sempre, a hesitação.
Para trás, o sonho que um dia também foi meu. Meto as malas no carro. Lembro-me que me esqueci do casaco de camurça. Não volto atrás para o ir buscar. Apenas um ser me segue. Aproxima-se para se despedir. Rogava-me apenas uma simples festa. Para ele é suficiente. Se ficasse, agora, seria por ele. Por aqueles olhos tristes que não entendem. Sento-me no carro, fecho a porta, ligo o motor. O portão está à minha frente, à espera. E eu preciso de me encontrar, e por isso vou.
Nem por aqueles olhos tristes poderei ficar, se ficasse agora, toda esta luta ficaria por ganhar.
Passo o portão e olho uma última vez pelo retrovisor onde antevejo os dias passados, as tardes cor-de-laranja, o barulho das folhas das árvores, e os sorrisos. Levo-os todos na mala, quase feita.
Nunca poderei olhar nos olhos daqueles que me poderão fazer ficar, porque sei que à mínima hesitação, eu fico. Por essa razão não me deixo fracassar e sem mesmo olhar, conduzo, mantendo os olhos no horizonte inexistente que desenho a cada segundo.
Respiro profundamente, fecho os olhos por segundos e sei que irei na direcção certa, ao passar aquele portão. A verdade está no horizonte à minha frente.
E o horizonte ao crepúsculo tem a mesma cor dos olhos que vejo reflectido em ti. Mas, parto. Resoluto. Decidido. Sem me despedir de ti, sem me despedir do lugar, dos vizinhos, sem me despedir sequer do cão de olhos tristes.
Quanto a ti, meu querido amigo, recordarei sempre os teus olhos melancólicos, o olhar de cãozinho abandonado, o teu ar sorumbático, e se estiver escrito sei que me voltarei a encontrar contigo noutra volta do caminho. Parto, pois. De olhos postos no horizonte.
Partir é necessário. Levo aos lábios um cigarro que retiro do maço Ritz. Aquele será o primeiro cigarro do resto da minha vida. O maço é preto, a luz é alva. A noite é morna. A estrada corria monótona e sem fim.
Acompanhado pela maresia da noite e pelo borbulhar das ondas do genérico do “Oceano Pacifico” viajei sem rota certa.
Íamos pela beira-mar sem darmos as mãos. Já não dávamos as mãos nessa altura. Lembras-te? Passava a vida alheado. Naquela tarde junto às ondas que vinham descansar na areia por breves segundos partilhámos o ar morno do fim da tarde pois já nada mais havia a fazer. Senão aproveitar o momento.
Todos os momentos são preciosos e, esses instantes, as únicas coisas que tínhamos em comum. O momento.
E a vida é composta por momentos ritmados como as notas de uma sinfonia de Vivaldi.
Mas recordas que sempre me senti num espaço que não me pertencia.
Um estranho no meu próprio espaço. Por vezes odeio aquele que me envolve. Como abomino esta cidade com capa de puritana.
Como detesto os habitantes da desgraça que se recolhem nos templos para rezarem a um Deus sem rosto que não sorri. Saírem de lá como se tivessem a alma lavada para, depois, meterem as mãos entre as coxas da cidade a babarem-se como touros com meia dúzia de ferros e carícias de olhos arregalados, os lábios a endurecerem com o cheiro de um corpo à espera onde deixam a solidão, a mudez da mulher, a correria dos filhos, a indiferença do cachorro.
Eu sempre alheado de tudo e todos. Cada vez sentindo uma alienação mais contundente.
Nada do que me dizias me poderia interessar. Eu já não era dali. Não era teu. E sabias. Não te dava muita paz.
As rochas da praia eram minhas. As gaivotas do céu eram tuas. E assim se faziam as partilhas entre nós que em breve estaríamos apartados para sempre.
Vou fugir? Talvez de mim.
O céu espera-me, os rios pertencem-me. Posso mergulhar neles quando o desejar. Chapinhar na água e fingir que os peixes gostam de mim. O vento e a chuva já não me assustam.
Vou ser como os pardais que saltitam de árvore em árvore, que buscam a comida no chão num bicar desaforado entre folhas e pó.
A sombra continuava a deambular na procura de mim e de ti.
Encontrou-te na esplanada. Sentou-se e pediu um café, tu uma água com gás. Bebidas de sabor distinto. Porque já éramos distantes. Foi acontecendo assim a separação de quem era há muito separado. Unidos tínhamos sido embora que leve e fugazmente. Tão efémero foi o acordo que não poderia ter sido mais inverosímil a consequência. Um filho, que deixarei para o mundo como um decalque de mim. O decalque de mim foi crescendo, eu encolhi. Encafuei-me no lar, ganhei bolor, julgo que apodreci a comer cebola todos os dias a todas as refeições.
Os vizinhos deixaram de me reconhecer, os cães começaram a ladrar-me. E eu não sei mesmo como sossegar, porque mesmo morto permanecerei deste lado. Aqui!
Se me custa a vida, mais me custa uma morte em que perco o que me resta, o meu derradeiro poder de decidir se fico em casa ou saio, se faço ou deixo por fazer.
Morto, sem apelo nem agravo, virão primeiro uns tipos de bata branca despir-me, amassar-me, invadir-me. Posteriormente virão outros de fato preto, camisa branca perfumarem-me de incenso e taparem-me o corpo gélido com um lençol branco e que emana o mesmo odor. Mas, morto, sou como um pedaço de carne de matadouro, que só ninguém come porque ainda não chegou a fome! Mas, não faltará muito.
Como fazer o que é preciso fazer? Como escapar a esta ideia de que morremos e ficamos à mercê dos indiferentes ou dos inimigos? Pura e simplesmente desaparecer - desaparecer mesmo desaparecer - como esses de que fala o jornal da noite na televisão, que desapareceram sem ninguém dar conta e por isso ninguém há-de encontrar. Porque de facto ainda estamos no princípio… De quê?
·
Entretanto a madrugada engoliu a noite, e a brisa folheava-a aleatoriamente, descortinando os segredos ali apostos, incitando os sonhos que rondavam o sono que me chegara muito profundamente.
Acordei como um sonâmbulo. Passei água fria no rosto. O espelho devolveu-me uma figura sem expressão, sem vida, sem esperança, onde apenas era visível a barba de dois dias que me cobria as rugas do desespero.
Entreabri a janela. A custo mirei de longe a velha, caquéctica, amarga e dócil, Lisboa.
O Tejo já tinha despertado e os cacilheiros já lhe provocavam pregas profundas nas suas águas deixando um rasto de espuma como o do champanhe aberto no Maxime por uma espanhola da vida já em fim de digressão que recebe um cliente bêbado a cantar em voz rouca “o fado da sina” para despejar a dor de corno e o ciúme.

Reza-te a sina/Nas linhas traçadas/Na palma da mão/Que duas vidas/Se encontram cruzadas/No teu coração/Sinal de amargura/De dor e tortura/De esperança perdida/Indício marcado/De amor destroçado/Na linha da vida. (1)

A minha sina é sofrer, sarar feridas originadas por cada aresta da vida. Queimam no peito as cicatrizes profundas que ainda sangram e pulsam.
É tempo de fazer uma pausa na monotonia do tempo. Até o próprio cansaço descansa em mim. Triste sina a minha que embarquei neste barco sem amarras que assoprado pelo vento percorre mares desconhecidos.
Soltam-se as vozes na escuridão e no espaço que me engole. Escuto o fado, sentindo o pecado, que me leva para onde não quero estar.

(1)"FADO DA SINA"
LETRA E MÚSICA: AMADEU DO VALE E JAIME MENDES

In: A filha que nunca tive (não editado)

Imagem: Google

JC

1 comentários:

Unknown disse...

Excelente texto! Como revi aqui certos momentos.
Um espaço muito bonito.
Parabéns!