(O texto que se segue é baseado em factos reais. Uma crónica inocente e sentida. Nomes e locais foram alterados para preservar a intimidade dos intervenientes e respectivas famílias)
Quando germinou foi angariada pelos pais como maravilhosa bênção de Deus. Já tinha neste mundo um irmão com dois anos de vida que ansiosamente a esperava para formarem o casal ambicionado. E Inês chegou.
Como todos nós, maquiada com os produtos do ventre da nossa mãe e não só. Chorou quanto pode e depois esqueceu-se de chorar para o resto da vida.
Perspicaz e hiperactiva, aprendeu desde muito cedo a pesar as palavras e a utilizá-las na medida certa de forma a não magoar.
Para ela todos os mais velhos que os pais eram avós. Simplesmente.
Na escola tentava esconder as suas capacidades com uma capa de modéstia, roçando por vezes a humildade excessiva, que a levava quase a um pedido de perdão quando obtinha resultados excelentes, com um: “Não tenho culpa!
Eu também não tive culpa de me cruzar contigo. Não tive culpa que os meus olhos repousassem nos teus.
Sei que trinta e dois anos-luz me separam do teu olhar, dos teus abraços, dos teus beijos.
Não quis ter mais amigos quando te conheci, tu também não. E no entanto é bom ter amigos, podem fazer-nos bem. Sabes?
Não preciso de te escrever, pegar na caneta, alisar o papel, és tu sempre que bates à porta da minha imaginação e te sentas à beira da minha cama que tantas vezes usámos como cenário para as nossas conversas sem ponto final.
Disse, cenário? Disse mal! A palavra pode implicar representação. Digo antes, que a minha cama continua a ser tudo como se o meu quarto fosse o próprio universo que nele se contém, porque é apenas um e está todo lá quando conversamos.
Hoje está frio.
Arranjo mantas próprias para os joelhos, Fui buscar o jarro de sangria que sempre apreciaste, porque tem a cor do sangue da vida.
Desculpa, não está assim tão gelada, mas podemos fazer de conta para estarmos de acordo com a época em que nos conhecemos. Um inverno de granizo até aos tornozelos, de fome, medo, silêncio, coisas assim.
A festa de aniversário do Ricardo era nesse dia. Também estavas convidada.
A minha memória está turva como o ambiente que nos envolvia.
Um odor a “erva” paira no ar, como se um rastilho de incenso tivesse sido deixado a arder durante várias horas.
O cheiro infiltra-se nas paredes, nos corpos dos jovens que ali se encontram, e partilham conversas menos apropriadas, e desvendam aquilo que provavelmente não conseguiriam numa situação rotineira, desprovidos do efeito de uma droga, que se encontra à venda ao virar da esquina.
Um jovem “snifa” um resto de cocaína que se encontra numa mesa improvisada. Um sinal de STOP, que roubaram certamente numa das suas noites de distúrbios, assenta num tronco de madeira maciço de base redondo.
Outro jovem com salpicos de barba dança agitado e eufórico ao som de uma música mais exaltada, uma música de ritmo mais dançante.
Nem se apercebe das outras pessoas que o rodeiam. No entanto, esta euforia artificial dura pouco tempo. Cai, de seguida, num adormecimento profundo, numa angústia tal, que não consegue mexer uma palha e mergulha na escuridão.
Um grupo, rondando os seus 16,17 anos, partilha mais um “tesouro” que vão rodando cuidadosamente num pequeno círculo. Encontram-se sentados em cadeiras um pouco desconfortáveis. Não ligam a esse pormenor. Estão, ali, em amena cavaqueira e partilham o cigarro sentindo-se bem e soltos pelo efeito provocado.
Um clima de obscuridade invade a sala. A luz não é propriamente bem-vinda naquele ambiente.
O negrume é rainha e senhora, e apenas por vezes um flash de uma luz psicadélica irrompe pelo escuro da sala, quebrando assim a monotonia da cor. Mas, nem todos se entregam às malhas narcóticas.
Encontro-me num canto a observar este cenário de autêntica destruição pessoal, e tento abstrair-me do que se passa à minha volta.
Há uma rapariga que também está sozinha do outro lado da sala, com um copo na mão. Bebe, uma bebida qualquer. Daqui, parece-me um sumo de laranja.
Constato, no momento, em que um dos flashes decide reaparecer e dar um pouco de luz à sala mergulhada na escuridão.
Enxergo o sumo a invadir o seu corpo frágil, como um metal detectado numa banal radiografia, uma vez que nos encontramos numa sala totalmente, desprovida de luz.
Tento, assim, aproximar-se dela e começar uma conversa pelo ponto que nos une: somos decerto os únicos naquele ambiente que não estamos sob o efeito de qualquer narcótico.
Remoí o meu cérebro tentando achar as palavras certas para uma primeira abordagem, uma vez, que se falhasse, viria a única pessoa, que me despertou interesse naquela sala, dar-me com os pés na cara e não me dar qualquer tipo de atenção, e preferir estar sozinha, como se tinha encontrado até então.
No entanto, tudo se resolveu, e penso que tinha escolhido as palavras exactas.
Já me tinha cruzado com ela, inúmeras vezes, contudo nunca lhe tinha dirigido a palavra. Pensei que talvez não fosse o momento exacto para travar uma conversa, num ambiente tão depreciativo como aquele.
Sentia-me sozinho, disso não havia qualquer dúvida e ela era a única pessoa que poderia ter alguma conversa construtiva.
Decidi, então fazer-me à estrada, ao pequeno troço que nos separava, e toquei-lhe no braço, antes de encostar a minha boca, no seu ouvido direito.
A música estava demasiado alta, o que tornava a comunicação algo difícil. Convidei-a a sair daquele local, uma vez, que notei que ela também não estava confortável com todo aquele panorama.
Ninguém deu pela nossa saída.
Como todos nós, maquiada com os produtos do ventre da nossa mãe e não só. Chorou quanto pode e depois esqueceu-se de chorar para o resto da vida.
Perspicaz e hiperactiva, aprendeu desde muito cedo a pesar as palavras e a utilizá-las na medida certa de forma a não magoar.
Para ela todos os mais velhos que os pais eram avós. Simplesmente.
Na escola tentava esconder as suas capacidades com uma capa de modéstia, roçando por vezes a humildade excessiva, que a levava quase a um pedido de perdão quando obtinha resultados excelentes, com um: “Não tenho culpa!
Eu também não tive culpa de me cruzar contigo. Não tive culpa que os meus olhos repousassem nos teus.
Sei que trinta e dois anos-luz me separam do teu olhar, dos teus abraços, dos teus beijos.
Não quis ter mais amigos quando te conheci, tu também não. E no entanto é bom ter amigos, podem fazer-nos bem. Sabes?
Não preciso de te escrever, pegar na caneta, alisar o papel, és tu sempre que bates à porta da minha imaginação e te sentas à beira da minha cama que tantas vezes usámos como cenário para as nossas conversas sem ponto final.
Disse, cenário? Disse mal! A palavra pode implicar representação. Digo antes, que a minha cama continua a ser tudo como se o meu quarto fosse o próprio universo que nele se contém, porque é apenas um e está todo lá quando conversamos.
Hoje está frio.
Arranjo mantas próprias para os joelhos, Fui buscar o jarro de sangria que sempre apreciaste, porque tem a cor do sangue da vida.
Desculpa, não está assim tão gelada, mas podemos fazer de conta para estarmos de acordo com a época em que nos conhecemos. Um inverno de granizo até aos tornozelos, de fome, medo, silêncio, coisas assim.
A festa de aniversário do Ricardo era nesse dia. Também estavas convidada.
A minha memória está turva como o ambiente que nos envolvia.
Um odor a “erva” paira no ar, como se um rastilho de incenso tivesse sido deixado a arder durante várias horas.
O cheiro infiltra-se nas paredes, nos corpos dos jovens que ali se encontram, e partilham conversas menos apropriadas, e desvendam aquilo que provavelmente não conseguiriam numa situação rotineira, desprovidos do efeito de uma droga, que se encontra à venda ao virar da esquina.
Um jovem “snifa” um resto de cocaína que se encontra numa mesa improvisada. Um sinal de STOP, que roubaram certamente numa das suas noites de distúrbios, assenta num tronco de madeira maciço de base redondo.
Outro jovem com salpicos de barba dança agitado e eufórico ao som de uma música mais exaltada, uma música de ritmo mais dançante.
Nem se apercebe das outras pessoas que o rodeiam. No entanto, esta euforia artificial dura pouco tempo. Cai, de seguida, num adormecimento profundo, numa angústia tal, que não consegue mexer uma palha e mergulha na escuridão.
Um grupo, rondando os seus 16,17 anos, partilha mais um “tesouro” que vão rodando cuidadosamente num pequeno círculo. Encontram-se sentados em cadeiras um pouco desconfortáveis. Não ligam a esse pormenor. Estão, ali, em amena cavaqueira e partilham o cigarro sentindo-se bem e soltos pelo efeito provocado.
Um clima de obscuridade invade a sala. A luz não é propriamente bem-vinda naquele ambiente.
O negrume é rainha e senhora, e apenas por vezes um flash de uma luz psicadélica irrompe pelo escuro da sala, quebrando assim a monotonia da cor. Mas, nem todos se entregam às malhas narcóticas.
Encontro-me num canto a observar este cenário de autêntica destruição pessoal, e tento abstrair-me do que se passa à minha volta.
Há uma rapariga que também está sozinha do outro lado da sala, com um copo na mão. Bebe, uma bebida qualquer. Daqui, parece-me um sumo de laranja.
Constato, no momento, em que um dos flashes decide reaparecer e dar um pouco de luz à sala mergulhada na escuridão.
Enxergo o sumo a invadir o seu corpo frágil, como um metal detectado numa banal radiografia, uma vez que nos encontramos numa sala totalmente, desprovida de luz.
Tento, assim, aproximar-se dela e começar uma conversa pelo ponto que nos une: somos decerto os únicos naquele ambiente que não estamos sob o efeito de qualquer narcótico.
Remoí o meu cérebro tentando achar as palavras certas para uma primeira abordagem, uma vez, que se falhasse, viria a única pessoa, que me despertou interesse naquela sala, dar-me com os pés na cara e não me dar qualquer tipo de atenção, e preferir estar sozinha, como se tinha encontrado até então.
No entanto, tudo se resolveu, e penso que tinha escolhido as palavras exactas.
Já me tinha cruzado com ela, inúmeras vezes, contudo nunca lhe tinha dirigido a palavra. Pensei que talvez não fosse o momento exacto para travar uma conversa, num ambiente tão depreciativo como aquele.
Sentia-me sozinho, disso não havia qualquer dúvida e ela era a única pessoa que poderia ter alguma conversa construtiva.
Decidi, então fazer-me à estrada, ao pequeno troço que nos separava, e toquei-lhe no braço, antes de encostar a minha boca, no seu ouvido direito.
A música estava demasiado alta, o que tornava a comunicação algo difícil. Convidei-a a sair daquele local, uma vez, que notei que ela também não estava confortável com todo aquele panorama.
Ninguém deu pela nossa saída.
(Continua)
2 comentários:
As vezes e no obscuro k damos mais atençao a algo k normalmente nos passava despercebido.
:D
espero pela continuaçao do conto.. tou a gostar.
beijinho
Querido Sonhadoremfulltime,
Recordo bem esta história; lembro quando a li pela primeira vez e como sei o quanto é marcante. Todos nós passamos por momentos destes. São sempre tristes e não esquecemos; questionamo-nos toda a vida no porquê de algo como o que sucedeu com esta tua querida amiga, mas infelizmente a vida, a realidade confronta-nos com este lado menos bom e, injusto.
Sei como é e, imagino como o sentiste na altura.
Este foi um dia em que pensaste que algo iria acontecer de diferente, mas o "destino" parecia estar traçado...
Um beijo
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