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segunda-feira, 15 de junho de 2009

Juventude



Tinha feito quinze anos há cerca de um mês. Era já um rapazote. Penso mesmo que possuía já uma certa consciência política.
Dedicava-me, num país por tradição extremamente sufocante, a actividades consideradas subversivas para a época, convencido que partilhando a simples verdade do mundo tudo ia mudar para o melhor dos mundos.
Conheci o medo e a coragem. Pessoas nobres e que de repente desapareceram.
Frequentava o LNA. Aquele dia permaneceu para sempre na minha memória.
Levantei-me cedo como costume. Tinha o horário da manhã. Saí de casa ainda meio atordoado pelo sono. A noite anterior tinha sido longa. O Faustino tinha ido lá a casa, para me ensinar mais algumas notas de viola.
No trajecto, passei pelo café do Sr. António que me disse:
- Vais para o Liceu?
- Vou. Entro às oito e meia! Respondi com ar curioso.
- Vai mas é p’ra casa… disse-me ele com a testa cheia de gotículas de suor.
- Houve uma revolução e não há aulas, está tudo fechado.
Ainda ele não tinha finalizado a frase e já se ouvia o roncar dos motores dos aviões que cruzavam o céu a baixa altitude, como pássaros em busca da sua presa. Estremeci. Com o ruído e com a emoção.
“Será verdade”, pensei eu sentindo aquele tremor nas pernas que sentimos quando algo nos sucede extremamente bom ou extremamente mau.
Segui o meu caminho, após agradecer a preocupação do Sr. António, mas tinha de ir observar de facto o que se estava a passar.
Cheguei ao LNA. Deserto. Os portões fechados. Nem vivalma. Algo de grave se passa e o Sr. António tem razão.
Mais uma vez os aviões da Força Aérea passam por cima da minha cabeça de tal forma que senti a deslocação do ar. Os meus tímpanos queixaram-se.
Sem saber de onde aparece o Marques também junto do LNA.
- Jota! Já sabes dos acontecimentos? Perguntou-me o Marques, com o seu ar de intelectual forçado.
- Ouvi comentar! Disse com ar impaciente e algo intranquilo.
- Claro. Está tudo cheio de tropas! Continuou o Marques tentando predominar a conversa e chamando a atenção de meia dúzia de curiosos que entretanto se tinham juntado.
- Em Lisboa é que está quente a situação! Prosseguiu o Marques, conseguindo o que pretendia. Ser o âmago das atenções e mostrar a sua cultura de mente aberta e cultivada por um pai que na clandestinidade pertencia ao Partido Comunista.
Eu e os curiosos seguíamos com atenção todas as sílabas salientadas pelo Marques.
- O centro das operações é no Carmo. Os gajos têm tudo cercado. O Caetano está lá, mas não tem hipótese.
Tanto eu como os curiosos ouvíamos com todo a concentração a sapiência do Marques sobre os acontecimentos.
“Sou um principiante nestas coisas, pensei eu comigo próprio. Sentindo uma admiração pelo meu amigo que estava por dentro de todos os acontecimentos.
- Jota! Vamos a Lisboa? Ao Carmo? Interrogou o Marques, empurrando os óculos contra o nariz, o que lhe acentuava ainda mais aquele ar de sabichão.
- Embora. Respondi eu de imediato. Curioso, mas apreensivo.
Corremos para a estação e apanhamos o comboio, praticamente vazio para a hora. Até chegarmos à estação, só se observavam grupos de pessoas cochichando de forma imperceptível, tal era o medo acumulado durante décadas.
Mais uma vez e outra os aviões a romperem o céu, arrancando arrepios a quem os observava. Finalmente chegámos ao Rossio. Um mar de gente. Uns riam, outros cantavam e outros ainda choravam. De alegria. Diziam os que eram surpreendidos com as lágrimas nos olhos.
Subimos ao Carmo, rompendo pelo meio da multidão que gritava a plenos pulmões «LIBERDADE».
Nunca tinha visto tantos chaimites. As tropas, essas faziam com os dedos esticados, o “V” de vitória.
Nos canos das G3 sobressaíam cravos vermelhos espetados.
Na lapela da maioria dos presentes, um cravo vermelho predominava nas indumentárias na sua grande maioria de cor escura.
De súbito deixei de ver o Marques. Rodei a cabeça em todas as direcções, tentando em vão avistar onde ele poderia estar. Encontrões, pisadelas, mas principalmente muitos sorrisos e alegria.
Surgindo do nada, vejo o Marques com um riso de orelha a orelha e com dois cravos vermelhos na mão.
Deu-me um dos cravos que coloquei no bolso da camisa de modo a ser bem visível.
O Marques por seu lado colocou o cravo dele na orelha. Aproximou-se de mim e disse:
- Dá cá um abraço bem apertado!
Pegamos nos nossos cravos e com um braço no ar segurando firmemente cada um o seu, o mais alto que conseguia. Assim, demos o abraço da fraternidade.
No meio da multidão, dois jovens estavam ali abraçados com um cravo vermelho erguido, celebrando a Revolução dos cravos.
Estávamos no ano de 1974. O dia era; 25 de Abril. Nós nunca mais fomos os mesmos. Portugal também não.


In "Ano Louco"


JC

2 comentários:

Maria Luis disse...

Assim que comecei a lêr identifiquei o excerto e o livro. Afinal, li-o de fio a pavio umas 5 vezes, no mínimo. De cada vez uma surpresa, um modo diferente de entender certas coisas. Ou não. Há nele (no livro) coisas que não se entendem, porque se se entendessem perdiam o nexo. A falta dele (do nexo) é por vezes o sal desse belo manjar, "Ano Louco". Está agora em casa de um amigo ;D
Bjokas

Raquel Vasconcelos disse...

Gostei desta perspectiva numa outra primeira pessoa. Gostei bastante. Gostei mais do 25 de Abril. Esqueci-me de quão distante/esquecidos estamos da verdadeira Liberdade.