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domingo, 21 de junho de 2009

Retalhos


Toda a nossa vida não passa de retalhos que ficam na nossa memória. Este é mais um pedaço que guardo no meu coração.
Duas linhas. Duas linhas que se estendem ao longo de muitos quilómetros.
Paralelas, produzidas em aço, nunca se encontram. Mas, todas elas têm um fim.
A tantos quilómetros temos de um lado, um vasto campo de oliveiras, do outro um pequeno ribeiro cruzado por uma velha ponte de madeira que nos leva a uma casa abandonada, como muitas que existem por todo o Ribatejo.

Faltam dois minutos para as três e naquele como nos outros dias, à hora certa o comboio atravessará a vila.
A minha tia olha clandestinamente para um e outro lado. Prepara-se para atravessar as duas linhas de aço. À sua frente, erecto junto ao banco da estação, encontra Avelino.
Tem os olhos rasados por lágrimas pequeninas e o rosto está vermelho rubro. O seu peito esgotado bombeia golfadas de sangue pelas suas veias. Sempre é verdade que a mulher tal como dizem, é uma infame adúltera.

“- Uma puta é o que ela é.”

Em breve esta atravessará a ponte de madeira que cruza o ribeiro para materializar a acusação.
O episódio já sobejamente contado e nunca documentado, agora corroborado pelos seus enraivecidos olhos azulados.
M. Do Carmo vê o marido do outro lado da linha e todos os seus olhos de maresia são Avelino. Percebe que ele já percebeu.
Que na sua perturbada mente, já sabe que aquilo que a mulher se prepara para fazer contraria o que lhe imprimiram, na sua educação.
Sabe que o acto que a mulher está prestes a cometer determinará o fim da já por si débil saúde. A mulher mantém-se de um lado, o marido do outro.
Olham-se. Olhos nos olhos como no primeiro encontro em que se conheceram.
Ela acena, ele olha apenas, estarrecido. Ela contínua, inclinando ligeiramente a cabeça para a esquerda, pedindo compreensão, mas a esse pedido Avelino responde com um rosto apático e distante.
O seu olhar invoca o frio dos serões sem lareira, passados na pequena casa. A mulher busca naquela distância que os separa o tempo suficiente para pedir a Avelino...
Por favor, não penses assim de mim. Naquela espera, a mulher busca o carinho do marido que perdeu há muito.
Pensa quando este chorava de noite e apenas repousava debaixo dos lençóis da cama que partilhava com ela...

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É também outro menino, o menino feito homem, aquele que mira Natacha disposta em posição fetal sobre as portas metálicas de um frigorífico, transformado em cama de operações, sustentado por dois cavaletes de madeira; é outro menino o menino feito homem, aquele que recorda o rosto de sua tia quando ela o pegava ao colo e o acarinhava contra o seu peito.
Eu amava a minha tia. Era a minha predilecta. Hoje nada posso fazer.
Marcou-me de tal forma que ainda hoje e passados já alguns anos, sinto remorsos por a não ter apoiado.
Natacha foi-me trazida por um tal Eduardo ontem à noite. Eduardo é advogado de um sem número de refugiados de leste que acorrem ao país. É mais uma. Eduardo está apaixonado por ela. Consigo ler o amor dos dois nos olhos mortiços de Natacha.
Os olhos dela são os olhos de minha tia. Os mesmos olhos que me olharam, certo dia, uma última vez. Os olhos que por si choraram, os mesmos que ele fitou uma última vez antes da locomotiva a colherem.
Os olhos que ele olhou uma última vez, quando já o comboio travara e o corpo esfacelado, se separara em tantos bocados quantos os que os braços conseguiam abarcar. Eu, sozinho agarrando em cada membro de minha tia e o corpo de Natacha ali corrompido: frágil e precário cortado pela zona dos rins.
São sem duvida corpos diferentes em vidas distantes, mas os olhos são os mesmos de outrora.
Um violino passou pelo consultório e deixou uma música tão deprimente quanto insuportável no espaço.
Começo a chorar. É novamente o menino João, aquele que se deixa abraçar pelo corpo morto da sua querida tia M. Do Carmo.
Bem-Haja tia e que Deus te tenha atribuído um pedacinho de Céu...



* Texto baseado em factos reais


In "Ano Louco"
Imagem: Google


JC

2 comentários:

Maria Luis disse...

Quando li este texto, pela 1ª vez, senti um arrepio. Esta é a realidade de muitas Marias do Carmo. De muitos Avelinos. Estas situações eram encaradas de uma forma tão "primária" (não consigo encontrar a palavra certa...).
Sempre encarei a fidelidade como uma "obrigação". Muitas coisas mudaram no meu modo de pensar ("Ano Louco" é tb responsável por isso, sabias?). A fidelidade primeira deverá ser SEMPRE connosco próprios. Ao sermos fiéis a nós, estaremos a sê-lo para com os outros. Porque uma verdade, ainda que cruel por vezes, é sempre nobre. E tal Nobreza não deveria ser corrompida por nada, ainda que esse nada seja uma moralidade, falsa afinal...
Mas não sou dona da verdade...seja ela qual fôr...
Lamento o desfecho da Maria do Carmo. Afinal, também o desfecho do Avelino, sem dúvida.
Haverá muitas e muitos por este mundo fora...

Parapeito disse...

A minha avó Maria do Nascimento tinha por habito dizer que a vida de cada um de nós era uma manta de retalhos que nós iamos aumentando conforme a vida passava,
Se fosse uma manta curta...decerto iamos ficar com os pés de fora...
Este titulo fez me lembrar...
Gostei de ler este "Retalhos"
E dizer que acredito que a sua tia Maria do Carmo tem um lugarzinho no céu..e nao quer de certeza que continue com o peso do remorso de como disse..nao ter feito nada por ela...fez e faz de certeza....sempre que se lembra do carinho dos abraços dela...ela lá no céu brilha um pouquinho mais ***