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sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Fragmentos


Há quanto tempo a cadeira ficou vazia? Não sei, mas o teu lugar permanece por ocupar!
Lembro-me com saudade daqueles caíres de tarde em que com o olhar de anjo agreste me inquirias o que estava a ler.
Se eu pudesse ter prendido esse olhar ao meu, certamente a cadeira continuaria ocupada, a mesa de madeira estaria ainda decorada pelo teu cabelo encaracolado de negro.
Cinquenta anos nos ombros e ainda tenho receio de decidir. Irei necessitar de mais outro meio século, até eu embarcar na derradeira carruagem e hesitarei sempre.
Eu andava numa de literatura russa. Manias dos anos setenta. Acordava com a noite ainda a descansar no seu leito ficcional de etéreas reminiscências.
Na ligeireza da velocidade da luz engolia metade de uma banana, bebia um copo de leite e num som abafado bocejava deixando sair o aperto da saudade sentida durante a noite.
As portas da biblioteca escancaravam-se às nove da manhã e não queria perder a cadeira habitual, o odor, o ritual de sempre.
Sentado na mesa de madeira transversal à estante, sentia-me o monarca dos livros. A leitura sempre cativante fazia-me perder o mundo exterior, trocando-o pela vida cravada nas folhas de papel dos clássicos.
Portanto, deixei-me desvanecer dos propósitos sociais da vida, e unha com carne percorria a lombada poeirenta dos livros expostos à espera que os avivassem.
Comia um pedaço de pão, nunca desviando uma nesga a atenção das páginas pálidas de tão amarelas.
No dia seguinte o ciclo recomeçava. Um dia ela apareceu escondida debaixo dos óculos de massa pretos. Acariciava os livros com mãos delicadas, roçava-as nas capas dos romances.
Levantava-se a meu lado, bocejava com os braços em arco esticava a coluna, arregalava os olhos para mim, como se eu fosse inverosímil, um invento novo, ou o personagem de uma vida refundida.
Passaram alguns dias e a formalidade mantinha-se.
Não me precipitei. Um dia, ao fechar o último livro tomei-a nos braços como impressa e editada para mim.
Acariciei-lhe os lábios, a face e a minha boca tocou a sua com a suavidade estonteante do secretismo.
Afinal de contas, apenas tínhamos, Dostoiesvski, Tolstói, e o resto dos sábios como testemunhas.
Presentemente, as provas são os espectros do meu passado.
Agosto/2007

5 comentários:

Terra de Encanto disse...

Vou dizer-te um segredo...esta música acompanhou uma etapa da minha vida que, tal como neste teu "sonho em mim", se desvaneceu já...

mais uma vez, a imagem é bela e forte. O texto...esse, carregado de sentimento, riqueza interior e expectativa. Que foi. Mas será novamente.

Milhita disse...

Sem palavras, sem razão, sem os instrumentos envenenados de gestos ilustrados, os instintos prevalecem.
Em movimentos profundos que nos fazem unicos, entendo, entendo a coragem de nos deixarmos simplesmente ser.
Um abraço meu amigo desassossegado
Bom fim de semana

Maria Clara disse...

Li com carinho, voltarei para saborear.
Bom fim de semana
MARIA

Sophia disse...

E fico à espera de mais visitas para uma opinião :)

Luz disse...
Este comentário foi removido pelo autor.